quarta-feira, 13 de julho de 2011

História Real: A viagem humanista de David Lynch

Em 28 de agosto de 2003, publique esse artigo sobre o filme "História Real" no Jornal Gazeta de Sergipe (Aracaju)

História Real: A viagem humanista de David Lynch

(*) Murilo da Silva Navarro

O cineasta americano David Lynch ficou famoso por exibir em sua obra cinematográfica uma narrativa não-linear e repleta de elementos bizarros e anticonvencionais. Inconformado com uma realidade aparentemente normal e sem conflitos, ele procurou desmascará-la em seus filmes, revelando personagens perversos submersos em situações repletas de esquisitices. Ao longo de sua carreira dirigiu seis curtas, nove longas-metragens e, de quebra, revolucionou a televisão norte-americana com a série Twin Peaks. Ao analisar obras como O Homem Elefante(1980), Veludo Azul(1986), A Estrada Perdida(1997) e, mais recentemente, Cidade dos Sonhos(2001), podemos dizer que David Lynch acabou por se tornar o mais autoral e heterodoxo dos
cineastas modernos.

Seus filmes provocam uma inquietante estranheza no espectador, ao unir procedimentos ilusórios e anti-ilusórios no desenvolvimento da narrativa, na direção dos atores, na utilização do som e da música, no uso das cores, na relação entre espaço e tempo. Muitas vezes suas produções são interpretadas pelos críticos como a maioria das obras surrealistas: ou representam um amontoado de pecinhas sem significado algum, ou são quebra-cabeças intelectuais e analíticos não tão óbvios. A obra de David associa cada filme do autor a imagens feéricas e um enredo impactante, contado preferencialmente na forma fragmentada.

Fugindo desse universo que o tornou famoso e se aproximando do tema da dignidade desenvolvido em O Homem Elefante, Lynch nos brinda com uma pequena obra-prima recheada de simplicidade e repleta de humanismo. História Real (The Straight Story – 1999) baseia-se na história de Alvin Straight, um velho de 73 anos que colocou o pé na estrada e fez sozinho, num minitrator John Deere, uma viagem de mais de 500 quilômetros, de Iowa até Wisconsin, para rever o irmão que sofrera um derrame.

A história foi extraída de um artigo publicada no jornal The New York Times que descrevia a jornada pitoresca que Alvin Straight iniciou em 5 de julho de 1994. Ele saiu da pacata cidade de Laurens, Iowa (EUA), viajando à velocidade de 8km/h, em direção a Mount Zion, Wisconsin (EUA). A viagem durou seis semanas e Alvin virou herói nacional mas se recusou a aparecer nos programas de entrevistas na TV. Morreu dois anos depois e seu funeral foi acompanhado por um minitrator similar ao que usou em sua odisséia.

Mary Sweeney, montadora dos filmes de David Lynch e atual esposa, ficou encantada com a história que leu e resolveu comprar os direitos e escrever o roteiro de História Real. Lynch gostou muito do roteiro e resolveu filmá-lo. Em seguida, convidou o quase octogenário ator e ex-dublê de westerns, Richard Farnsworth para o papel de Alvin. Para completar a equipe convidou a atriz Sissy Spacek, o genial fotógrafo Freddie Francis que, para o mesmo Lynch, conseguiu as texturas surpreendentes do filme O Homem Elefante e o parceiro constante, Angelo Badalamenti, para compor a trilha sonora.

Dessa química perfeita entre diretor, atores e técnicos surgiu um road-movie carregado de humanismo e de velocidade própria. Graças ao ritmo vagaroso da viagem, o personagem vivido por Farnsworth acaba vendo aquilo que ninguém mais se dá ao trabalho de observar: a paisagem, a vida que corre lá fora – aquilo que fica geralmente borrado pela velocidade dos tempos modernos.

Em sua odisséia, Alvin encontra de tudo: uma garota adolescente em fuga, uma enorme caravana de ciclistas, uma mulher assustada com a quantidade de cervos atropelados por ela, uma família prestativa, dois gêmeos completamente diferentes. Por meio deles, o personagem vai se revelando aos poucos e também as razões que o movem em sua longa jornada pelo meio-oeste americano para reencontrar o irmão.

Como bem ressaltou o cineasta Walter Salles, num artigo para a Folha de S. Paulo sobre o filme, “Road-movie são quase sempre viagens iniciáticas, rituais de desvendamento do mundo. Revelam uma geografia física e humana desconhecida para aqueles que começam a jornada”.

O ritmo da viagem de Alvin é orquestrado pelas belíssimas imagens das paisagens rurais do meio-oeste dos Estados Unidos e pela trilha envolvente de Badalamenti. A câmera Lyncheana capta o brilho das estrelas, o lirismo da chuva, o olhar contemplativo de Farnsworth e a linearidade das faixas da rodovia por onde Alvin passa.

David Lynch usa a história de Alvin para extrair o que existe de tocante nela, mas cuida para que isso jamais desemboque em emoções rasteiras e simplórias de um melodrama. A película é econômica, direta e surpreende pela narrativa clássica. Mesmo assim, Lynch encontra espaço para, de forma sutil, dar suas pinceladas autorais em alguns momentos do filme.

História Real guarda algumas semelhanças com o filme Morangos Silvestres, do cineasta sueco Ingmar Bergman, em que o velho médico Isak Borg atravessa o país para receber uma distinção acadêmica. No caminho, Borg, um egoísta convicto, marcado pelo ressentimento e pelo individualismo, tem oportunidade de repensar suas relações com o próximo. Em ambos os filmes vemos o processo de humanização de personagens idosos, que a luta pela vida transformou em seres duros.

Assim, a exibição do filme História Real, de David Lynch, esta semana na SOMESE, é um bom momento para refletirmos sobre a vida e constatarmos que a superficialidade e pirotecnia eletrônica de mega-produções hollywoodianas como Matrix – Reloaded e Exterminador do Futuro 3 nunca irá superar a simplicidade e beleza de uma história verdadeira. História Real é o melhor antídoto contra a alienação e urgência da América de Bush: imperialista, desumana e selvagem (no pior sentido da palavra).

(*) Mestre em Física pela Universidade Federal de Sergipe e Cinéfilo.

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