segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A Grande Beleza

Gostei muito desse artigo do Rubens Ewald Filho
 
A Grande Beleza (La Grande Belleza) Italia, 13. Direção de Paulo Sorrentino. Com Toni Servillo, Carlo Verdone, Serena Grandi, Fanny Ardant, Sabrina Ferilli, Carlo Buccirosso, Iaia Forte, Giorgi Passotti, Isabella Ferrari.

      Favorito para o Oscar de filme estrangeiro deste ano, vencedor de melhor filme europeu, indicado para o Globo de Ouro, Independent Spirit, este é o sexto e melhor filme de um cineasta napolitano Paolo Sorrentino que até agora não é muito conhecido por aqui. Alguns podem lembrar de algum Festival com o “Il Divo”, o drama sobre um astro do rock, Sean Penn ( o interessante “Aqui é o meu Lugar”) e em breve terá feito episódio para “Rio, Eu Te Amo”. Mas só agora que conquistou seu espaço como o herdeiro de Fellini, com este filme espetacularmente belo, que é melhor descrito como uma versão 60 anos depois de “La Dolce Vita”, agora a cores e com o personagem do jornalista (feito então por Mastroianni, aqui pelo grande ator teatral  Toni Servillo, que nessa altura escreveu apenas um romance de sucesso e desperdiçou seu tempo em coisa alguma, continuando a ser o jornalista favorito dos ricos e famosos, dando festas na cobertura-terraço de seu apartamento perto do Coliseu). 
      Fellini é assumidamente a chave fundamental para penetrar no filme, o que não deixa de ser um problema já que são dez anos de sua morte e muita gente já não tem a menor idéia de quem ele seja. Ainda mais para identificar que é utilizado seu estilo narrativo, seus habituais  movimentos de câmera, marcações, figurantes bizarros, trilha musical misturando como a própria cidade de Roma o sagrado e o profano( alias as danças nas festas são um charme a parte). Na verdade, ajuda muito a embarcar no filme ter essa chave. E mergulhar num retrato contemporâneo e altamente critico –porém sutil- de uma sociedade talentosa, uma cidade linda, uma população cheia de energia  mas que se perde em banalidades. Algumas das citações porém é possível que a gente perca por falta de maior conhecimento do cotidiano romano (uma das poucas que eu descobri foi a presença de Serena Grandi, que foi uma voluptuosa estrela da teve que agora ficou uma bruxa impressionante. É ela que leva a bronca justamente quando vai tomar injeção de Botox!).   
     Talvez por causa disso, o espectador casual pode se perder diante do filme ate porque faz tempo que não se cultua mais a beleza como um fator de qualidade no cinema.A  Fotografia em filmes de arte europeus e até orientais recentes tem sido granuladas e feias.Mesmo no italiano que já teve a melhor direção de arte, a melhor fotografia, melhores figurinos, do mundo, que dava aulas para Hollywood em Cinecittá. Este filme dá sinais de que nem tudo esta perdido. Aqui, Roma volta a ficar deslumbrante, fotografada de maneira requintada e original. Como afirma Sorrentino: “Queria que as luzes de movessem com o filme. Gostava muito dessa idéia. Então ou as luzes se movem ou os personagens entram ou saem da luz o tempo todo”.
     Há naturalmente outro fator subjacente e evidente: o filme retrata a época desonrosa em que a Itália era dirigida pelo primeiro ministro Berlusconi e sua cultura do Nada, um palhaço que mais parecia um imperador daquela linha Calígula, guardadas as diferenças. Que era corrupto, superficial, adorava orgias e que finalmente acabou sendo  cassado (e para piorar dominava todos os meios de comunicação). Nessa Roma do filme é a historia de  alguém (no caso o diretor, não o personagem) que tenta encontrar algum sentido num mundo onde justamente as coisas perderam o sentido! Onde se acentuou a vulgaridade, a perde do sentido do pudor, vergonha, modéstia, discrição! 
      Não é apenas uma carta de amor à cidade eterna mas uma denuncia dos excessos da Itália atual, que propicia aos romanos uma vida muito dura, sem sentido,  cansativa e difícil.  Mas para quem estiver atento não faltam momentos de incrível beleza e simbologia (um exemplo: a menina que reclama dos pais que a forçam a trabalhar. Mas chorando vai cumprir o dever e pintar um quadro com tinta que joga numa tela branca. E que surpreendentemente resulta muito bonita e complementar !).
      O diretor dá algumas chaves para isso. Há uma citação no começo de um autor preferido de Sorrentino, Louis –Ferdinand Céline Viagem ao Fim da Noite. Que podia se resumir assim “Nossa viagem  é inteiramente imaginaria. Esta é sua força”.Depois se formam círculos como no inferno de Dante. E por fim refere-se ao Livro que Flaubert queria escrever e seria  sobre o Nada. 

      A Grande Beleza é a tentativa de louvar o belo enquanto se critica justamente a essa cultura do nada, do burro, do vulgar. Como já disse é preciso não esperar uma narrativa tradicional e  se deixar levar pelo redemoinho de imagens (que disparam após um tiro de canhão), com algumas ocasionais citações explicitas de La Dolce Vita (a visita ao palácio com velas, a sequencia com a velha freira que seria milagrosa, a visita ao cabaret de mulheres nuas, a aparição crepuscular de Fanny Ardant (como fazia Anna Magnani em Roma de Fellini alias a presença freqüente de freiras de todos tamanhos e idades, também fazem pensar no desfile de trajes eclesiásticos). E muita impressionante como imaginação e realização que nos tempos atuais talvez só um Wong Kar Wai seria capaz de concorrer (ainda em outra esfera). 

     Acho A Grande Beleza um filme fascinante e o retorno da Beleza as imagens do cinema italiano. Que seja bem vindo. Temos agora um Novo cineasta genial para conferir.

REF

Link para o original: http://rubensewaldfilho.blogspot.com.br/2013/12/a-grande-beleza.html

quarta-feira, 24 de julho de 2013

A síndrome do "copia e cola" - A dificuldade de identificar a autoria de textos e ideias em tempos de "Ctrl-c, Ctrl-v"

Revista Língua Edição 93 - Jul/2013

Foram 13 anos até que o Superior Tribunal de Justiça concedesse ganho de causa à rede Globo num processo por plágio.

A escritora de livros infantis Eliane Ganem alegava que a minissérie global Aquarela do Brasil, escrita por Lauro Cesar Muniz, usava um argumento seu, que ela diz ter submetido a outras emissoras na época. Muniz afirmou em sua defesa que o mote principal da série - o da personagem que se torna famosa - era uma ideia banal, que carecia de ineditismo.

Apesar da vitória da emissora, o caso ganha ambiguidade pelo simples fato de Eliane ter registrado a obra na Biblioteca Nacional em 1996 com o mesmo nome da minissérie, que foi ao ar quatro anos depois. Em 2008, a Justiça já havia ordenado o pagamento de uma indenização de R$ 100 mil à autora. Mas agora, com a decisão da 4ª Turma do STJ, a ação foi definitivamente encerrada.

RedeO que disputas como essa parecem evidenciar, para além das reviravoltas jurídicas, é a delicada questão da autoria. O que caracteriza uma ideia original? Numa seara como a da propriedade intelectual, em que a materialidade das provas às vezes é tão palpável quanto fumaça, a velha pergunta sobre o que é novo volta revigorada a cada escândalo de plágio. A complexidade dos casos acaba colocando em xeque o próprio conceito de originalidade.

A internet facilitou o manuseio da informação. Seus mecanismos automatizaram nossa relação com o texto. Sinal disso é a popularidade da expressão "Ctrl-c, Ctrl-v", comando equivalente a "copiar e colar" em navegadores e processadores de texto, emblema de uma geração que pouco digere do material que encontra na internet, reproduzindo-o como se fosse seu.

Outro sintoma alarmante da banalização do plágio também se encontra no ambiente universitário e acadêmico, cuja credibilidade vem sendo solapada por denúncias de apropriações não creditadas de teses e artigos acadêmicos [ver quadro da página ao lado].

EspíritoNo jornalismo, o plágio também já fez suas vítimas: nos EUA, o jornalista e escritor Fareed Zakaria foi suspenso pela revista Time por se apropriar de trechos de um artigo da New Yorker em 2012.

Nem a literatura escapou desse fantasma no episódio, agora célebre, que envolveu Max e os Felinos (1981), de Moacyr Scliar, e A Vida de Pi (2001), de Yan Martel.

- Até onde possa me lembrar, nunca fui vítima de plágio. Até porque em literatura isso é muito complexo. Os temas são eternos e nós todos circulamos entre eles. Aqueles que procuram escrever a todo custo terminam copiando e, é claro, errando. Muitos escritores fracassam porque querem o sucesso e não o êxito. E, em literatura, só o êxito interessa - afirma o escritor Raimundo Carrero, autor de Tangolomango (Record).

O sucesso, no entanto, parece ter vindo acompanhado também pelo êxito no caso do escritor canadense Yan Martel. Vencedor do Booker Prize 2002 com o romance A Vida de Pi, adaptado em 2012 para os cinemas por Ang Lee, Martel não só assume ter se inspirado na premissa de Max e os Felinos como se gabou de ter aproveitado melhor a história do menino preso num barco com um tigre.

As semelhanças entre as obras foram notadas pela primeira vez pelo jornal inglês The Guardian, à época do lançamento do livro de Martel, que, pressionado pela imprensa, contra-atacou: "Será que haveria o mesmo escândalo se eu dissesse que me inspirei na arca de Noé?".

Mais tarde, Martel e Scliar entrariam em acordo amigável, intermediado por Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, que passaria a editar o escritor gaúcho.

O que parece estar em jogo na provocação do escritor canadense, no entanto, é o fato de que certas ideias não são exclusivas de uma cabeça, mas pertencem a uma narrativa maior, de domínio coletivo, podendo ser retrabalhadas por vários autores em tempos diferentes e de formas diversas. O que não exclui o fato de que as similaridades entre as obras de Martel e Scliar são muito mais concretas e específicas do que a metáfora genérica da arca de Noé.

No caso da minissérie global Aquarela do Brasil, o resultado da perícia atestou que tanto a ideia de Lauro Cesar Muniz quanto a de Eliane Ganem eram inéditas, sem semelhanças suficientes que configurassem plágio. É como se as duas ideias, na verdade uma só, tivessem nascido pelas mãos de autores diferentes separados no tempo e no espaço, resultado de algum espírito de época [Zeitgeist, em alemão] ou sob inspiração de algum elemento cultural recorrente.

Em outras palavras, a trajetória de uma cantora que sai da pobreza para o estrelato, posto dessa maneira, não chega a ser novidade, ainda que a "coincidência" entre os nomes das tramas de Muniz e Eliane nos deixe com a pulga atrás da orelha.

"Não é possível deter direitos sobre temas", afirmou o ministro e relator do processo Luis Felipe Salomão, que por sua vez citou em sua decisão o doutrinador Hermano Duval, para quem ideia e forma de expressão são coisas independentes.

Em Direitos Autorais nas Invenções Modernas (1956), obra de referência nos estudos sobre propriedade intelectual, Duval afirma que uma ideia "não pertence exclusivamente aos autores das obras em conflito, pertence a um patrimônio comum da humanidade".

Se no conteúdo as evidências de plágio tendem a ser vagas, passíveis de reformulações e subterfúgios de estilo, na expressão a forma com frequência denuncia o decalque.

Com estiloO escritor francês Michel Houellebecq que o diga. Em 2010, foi acusado de plágio pelo site Slate, que descobriu trechos inteiros de verbetes da Wikipédia francesa reproduzidos no romance O Mapa e o Território (Record).

Houellebecq, obviamente, negou as acusações, as quais considerou "rídiculas". Mas sua inocência deve-se antes ao gesto deliberado de reproduzir os trechos do que ao crime de falsa autoria. "Se as pessoas de fato pensam isso, então elas não têm a menor noção do que é literatura. Isso faz parte do meu método", rebateu.

A premissa de Houellebecq, fundamentada no uso estilístico do plágio, mostra-se afinada com as vanguardas literárias mais recentes, cujos experimentos com a matéria verbal partem de princípios como reorganização, reciclagem, reapropriação e até mesmo plágio deliberado.

Não por acaso, o escritor Kenneth Goldsmith, editor do site UbuWeb - dedicado à literatura conceitual - pegou emprestado o termo "unoriginal" [algo como "desoriginal"] da crítica literária Marjorie Perloff para tecer seu artigo-manifesto It''s Not Plagiarism. In the Digital Age, It''s "Repurposing." [Não é plágio. Na era digital, é "repropósito"].

Para Goldsmith, numa época abarrotada de textos como a atual, não haveria necessidade de escrever mais. Em vez disso, ele defende a necessidade de "aprender a negociar a vasta quantidade que já existe". "Como eu abro caminho em meio a esse matagal de informação - como eu o gerencio, analiso, organizo e distribuo - é o que distingue a minha escrita da sua."

- É uma literatura em que o autor quase não escreve, e cujos métodos se assemelham à colagem dos pintores cubistas e à apropriação de objetos industriais feita por artistas como Marcel Duchamp ou Andy Warhol - explica o escritor Braulio Tavares, colunista de Língua, referindo-se ao método preconizado por Goldsmith.

Mas aquilo que as vanguardas pós-modernas passaram a tratar como colagem, reapropriação ou seja lá que nome leve, no início do século 20 já se encontrava formulado pelos primeiros modernistas, premidos pela perspectiva de que nada mais pudesse ser feito, já que tudo havia sido dito pelas gerações anteriores.

A questão da originalidade, por exemplo, foi tema central na obra de escritores como T. S. Eliot, autor de Terra Devastada, que comparou os poetas aos ladrões no ensaio "Philip Massinger", em Sacred Wood [floresta sagrada]:

"Poetas imaturos imitam; poetas maduros roubam; maus poetas deformam aquilo que tomam, e bons poetas fazem daquilo algo melhor, ou ao menos algo diferente".

ReapropriaçãoSeguindo a metáfora eliotiana, o escritor e tradutor Gabriel Perissé, de Língua, acrescenta:

- Devemos ser tão bons ladrões que ninguém perceba que fizemos com o alheio algo melhor. O plágio criativo perfeito é quando o roubo é seguido de assassinato, e nem precisamos citar a vítima, cuja alma absorvemos e cujo corpo escondemos dentro do nosso próprio texto.

Uma frase em particular, já atribuída a tantos autores no século passado a ponto de ser considerada apócrifa, dá bem a medida da relativização do conceito de originalidade em nossa época, além de ser ela própria uma "licença poética" para o plágio criativo:

"Se você rouba de um autor, é plágio; se você rouba de vários, é pesquisa".

Segundo o site Quote investigator, o primeiro registro desse enunciado é de 1932, seguido de variações que às vezes levavam em conta "livros" em vez de "autor", "novidade" em vez de "pesquisa", entre outras equivalências. Sua mensagem, porém, permaneceu intacta. Em outras palavras, reside na multiplicidade de vozes a base de uma linguagem original. E quanto menor o número de fontes de inspiração e de pesquisa, maior a chance de soar parecido com algo que já foi produzido.

CriptomnésiaUm dos casos mais conhecidos de "roubo" na literatura talvez seja o romance Lolita, de Vladimir Nabokov, publicado em 1955.

Diferentemente do que se imagina, a história do homem culto, que recorda seu caso tórrido com uma pré-adolescente, na verdade foi publicada pela primeira vez sob a forma de um conto pelo alemão Heinz von Lichberg, em 1916.

O escritor e ensaísta Jonathan Lethem relata a estranha coincidência entre essas duas narrativas no artigo "O êxtase da influência", publicado em 2007 pela Harper''s. No texto, Lethem se detém sobre a possibilidade de Nabokov ter se apoderado da trama conscientemente enquanto esteve em Berlim, em 1937.

Outra hipótese levantada pelo ensaísta é a de que um dos romances mais populares do século 20 tenha sido fruto de um fenômeno conhecido como criptomnésia, espécie de plágio "não deliberado" que ocorre quando uma memória ressurge sem que o sujeito se dê conta de sua origem, tratando-a como se fosse original.

- A criptomnésia é uma memória escondida, que não se sabe ter. O fenômeno pode ser cogitado quando o artista nega ter feito o plágio de forma intencional ou não se lembra de ter "copiado" algo - explica Daniel Martins de Barros, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo e coordenador médico do Núcleo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica.

Para Barros, a tese da criptomnésia, na prática, é muito difícil de ser provada, mas por ser uma tese acatada pela Justiça, pode servir como atenuante.

- Embora não se trate de uma doença, não há deliberação racional ou produção intencional - pondera.

Ainda que a modernidade tenha colocado na berlinda a questão da autoria - e os pós modernos a esgarçaram a ponto de quase aniquilar o conceito - há quem discorde dessa pulverização do autor.

Para o crítico e escritor Antonio Cicero está claro que "a morte do autor", postulada pelo teórico Roland Barthes em ensaio homônimo [ver quadro na próxima página], deve ser entendida em termos da autonomia do texto em relação ao seu produtor, e não propriamente como a insignificância deste. Em ensaio publicado na Folha de S.Paulo em 2010, Cicero questiona o conceito que influenciou gerações de estruturalistas e de estudos literários:

"Ao contrário do que Barthes pretende, não é verdade que o autor seja ''uma figura moderna'', um produto de nossa sociedade na medida em que, ao emergir da Idade Média com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz de modo mais elevado, da ''pessoa humana''".

Cicero acrescenta que "A figura do autor é indissociável do próprio emprego da escritura e já se encontra inteiramente definida na Antiguidade clássica."

Se a segunda metade do século 20 assistiu ao declínio do autor nos círculos teóricos e acadêmicos, talvez estejamos presenciando um renascimento, neste início de século 21, do conceito de autor como uma espécie de "curador" de conteúdos e formas.

Não que seu papel tenha se restringido à mera reprodução do que já foi dito. Mas a onipresença de informações proporcionada pelas novas tecnologias de comunicação desobrigou-o da originalidade absoluta, idealizada, cabendo-lhe organizar e dialogar com outras ideias e discursos em busca de uma nova identidade, ainda que fragmentada.
Decalque da academia
Casos de plágio acadêmico ganham visibilidade na mídia Plágio é coisa séria. Mas quando ocorre na academia, pode custar uma carreira e até depor autoridades. Em fevereiro deste 2013, a ministra da Educação alemã Annette Schavan renunciou após acusações de que teria copiado trechos de sua tese de doutorado, defendida há trinta anos na Universidade Heinrich Heine, em Düsseldorf. No ano passado, a Hungria viu seu presidente Pál Schimitt abandonar o posto pela mesma acusação. 

Não há estatísticas sobre plágios no meio acadêmico, que tendem a ser resolvidos internamente, sem acionamento da Justiça. Raro um caso como o de um pesquisador da USP de Ribeirão Preto, exonerado em 2011 após ser denunciado por professores da UFRJ, que identificaram como deles as imagens usadas pelo acusado num trabalho para a Faculdade de Ciências Farmacêuticas.

Nada se compara, porém, ao "plágio em família" ocorrido em Portugal no começo de 2013, envolvendo um casal de pesquisadores: ele, um político social democrata, e ela, professora de um instituto politécnico, defenderam teses com três anos de diferença no Instituto Superior de Ciências do Trabalho, em Lisboa. Apurou-se que os mestrados de ambos apresentavam excessivas semelhanças, em temas, ideias, títulos, estilo dos parágrafos e até bibliografia.
 
Como criar alunos-autores sem os vícios do "copia e cola" na internet
Um roteiro de atividades para estimular a noção de autoria nos alunos e evitar o uso indiscriminado da web em trabalhos escolaresAtualmente, não é um real problema a internet disponibilizar aos estudantes um universo praticamente infinito de informações. O problema está em como os docentes e as escolas podem usar esse universo de informações ao seu favor. Criatividade, fundamentação pedagógica, técnicas didático-metodológicas inovadoras e conhecimento das novas tecnologias são fatores importantes para evitar o plágio e convidar os alunos a realizarem pesquisas genuínas. Isso pode ser obtido por meio de atividades que exijam dos estudantes atitudes, posicionamentos e reflexão, valendo-se de ferramentas alternativas de produção de pesquisa. Vejamos algumas propostas: Uma pesquisa que envolva um "olhar" sobre dado assunto, sendo esse olhar relatado por pessoas pesquisadas, não por livros didáticos ou fontes da internet (pesquisa oral);

Um trabalho que consista em extrair da internet dois textos sobre o mesmo assunto, em que o estudante precise identificar posturas diferentes e explicar essas posturas diferentes em ambos os textos;

Atividades em que seja necessário um registro fotográfico de fenômenos que estão sendo pesquisados textualmente, tais como fenômenos físicos, químicos e biológicos. O texto pode ser de fonte virtual, mas as fotos devem ser de autoria dos estudantes, registradas em seus "cotidianos";

Produção de vídeos explicativos sobre temas pesquisados na internet. Esses vídeos devem ter roteiro, objetivos, produção e créditos. Podem ser gravados com o celular e editados na própria internet;

Uma pesquisa sobre o tema baseada em imagens, não em textos, onde cada uma delas deva ser explicada por um estudante do grupo, de forma textual ou oral;

Solicitar aos alunos que façam pesquisas sobre um dado tema, e toda a fonte de produção da avaliação escrita seria extraída dos textos entregues pelos alunos. Isso forçaria aos estudantes, mesmo aqueles que plagiaram, a estudar o que foi copiado para realizar a avaliação.
Juliano Costa é gerente pedagógico do
Sistema de Ensino COC/Pearson
 
Caçadores de cópias
A tecnologia a serviço da detecção de plágios na redeLonge de ser vilã da era moderna, a internet ampliou nossa consciência da linguagem ao democratizar o conhecimento, e se por um lado facilitou decalques em série, por outro ajudou na detecção deles por meio do cruzamento de dados. Basta digitar uma frase conhecida em mecanismos de busca como Google e Bing, por exemplo, para descobrir as mais variadas ocorrências de uma expressão na rede, com resultados que vão desde trivialidades creditadas erroneamente a escritores famosos até plágios os mais descarados.

- Há alguns anos, quando um aluno me apresentou uma conclusão de produção impressa, digitei uma frase aleatória na ferramenta de busca do Google e encontrei o texto na íntegra, mais de uma vez replicado em sites e blogs. Ao ser questionado, ele afirmou ser de sua autoria. Com 14 anos, já tinha consciência do que estava fazendo. O aluno foi advertido - relata a assessora pedagógica Maria Cristina Lindstron, que possui mais de 20 anos de experiência com o ensino fundamental e médio. 

Ao que parece, no "vale-tudo" da blogosfera e das redes sociais, em que retuítes, citações e compartilhamentos de conteúdos alheios são parte indissociável da atividade dos internautas, a autoria é quase um detalhe, uma nota de rodapé sem muita importância. É nesse contexto que professores e educadores devem manter-se antenados nas novas tecnologias, sendo capazes usá-las a seu favor no combate ao plágio.

Fruto da necessidade acadêmica de atestar a originalidade de trabalhos de pesquisa, algumas ferramentas foram desenvolvidas especificamente para detectar o plágio de textos. Uma delas, o Plagius [www.plagius.com], trabalha com diversos formatos de arquivo (doc, pdf, rtf, etc.), fornecendo relatórios detalhados sobre ocorrências semelhantes na internet e suspeitas de decalque. O Farejador de plágio [www.farejadordeplagio.com.br], por sua vez, também vasculha a internet atrás de plágios do arquivo-alvo, pesquisando inclusive "trechos saltados" em obras para serem analisados posteriormente.

Considerando que nem tudo o que se produz na academia está disponível para consulta na internet, os resultados obtidos por esses aplicativos não são de todo confiáveis - o que, evidentemente, não lhes tira o mérito.
 
Não gosto de plágio
Blog reúne denúncias na área de tradução
Bom exemplo de utilidade pública, para defender a propriedade intelectual por meio da blogosfera, encontra-se no campo da tradução. O blog Não gosto de plágio [http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/], da tradutora Denise Bottmann, é uma referência na defesa dos direitos autorais de tradutores, muitas vezes nem creditados nas obras.

O blog foi criado em 30 de setembro de 2008 (dia do tradutor) em meio a uma onda de denúncias de plágio de traduções. Entre as principais irregularidades, destacam-se as edições piratas feitas a partir de trechos e elementos de traduções anteriores. Tudo sem pagar nem dar crédito aos reais tradutores-autores.

- Creio que o trabalho sistemático de cotejos e apontamentos no Não gosto de plágio acabou mostrando que a prática era muito mais disseminada do que se imaginava, e ganhou grande repercussão. Considero que o blog atingiu grande parte de seus objetivos, conseguindo a retirada de muitos títulos do mercado e, se não a extinção, ao menos uma visível diminuição desses procedimentos ilícitos - afirma Denise. 

O blog apresentou cerca de 150 cotejos de obras espúrias, além de ter denunciado outras irregularidades, como a inscrição de fraudes no Programa Nacional do Livro de Baixo Preço, do Minc/FBN. O blog encaminhou mais de dez pedidos de representação junto ao Ministério Público para coibir essas práticas.
 
O tecido das citações
Um trecho de "A morte do autor", de Roland Barthes"Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, libertando um sentido único, de certo modo teológico (que seria a ''mensagem'' do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, nenhuma das quais é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura. Parecido com Bouvard e Pécuchet [personagens de Gustave Flaubert], esses eternos copistas, ao mesmo tempo sublimes e cômicos, e cujo profundo ridículo designa precisamente a verdade da escrita, o escritor não pode deixar de imitar um gesto sempre anterior, nunca original; o seu único poder é o de misturar as escritas, de as contrariar umas às outras, de modo a nunca se apoiar numa delas; se quisesse exprimir-se, pelo menos deveria saber que a ''coisa'' interior que tem a pretensão de ''traduzir'' não passa de um dicionário totalmente composto, cujas palavras só podem explicar-se através de outras palavras, e isso indefinidamente: aventura que adveio exemplarmente ao jovem Thomas de Quincey, tão bom em grego que, para traduzir para esta língua morta ideias e imagens absolutamente modernas, diz-nos Baudelaire, ''tinha criado para si um dicionário sempre pronto, muito mais complexo e extenso do que aquele que resulta da vulgar paciência dos temas puramente literários'' (Os Paraísos Artificiais); sucedendo ao Autor, o scriptor não tem já em si paixões, humores, sentimentos, impressões, mas sim esse imenso dicionário onde vai buscar uma escrita que não pode conhecer nenhuma paragem: a vida nunca faz mais do que imitar o livro, e esse livro não é ele próprio senão um tecido de signos, imitação perdida, infinitamente recuada."
 
artigo original: http://revistalingua.uol.com.br/textos/93/artigo292190-1.asp#.Ue_h1nQRMXo.twitter

domingo, 10 de março de 2013

A propósito de Salvador Dalí e Luis Buñuel

Do Professor Jorge Vital Moreira (Professor Universitário -Ph.d- em Wisconsin) especialmente para o Setaro's Blog:

Tenho um amigo mexicano, que é artista plástico mas decidiu estudar Psicanálise. Recentemente me escreveu umas linhas para dialogar sobre o pintor espanhol surrealista Salvador Dali e a Psicanálise. Vou dar a este caro amigo um nome fictício, vou chamar-lhe de Orozco, para preservar-lhe a privacidade.

Quando estudei no México, Orozco era um jovem pintor que vivia impressionado com o comportamento e as pinturas de Salvador Dalí. Orozco também admirava os filmes do cineasta surrealista espanhol, Luis Buñuel, que vivia exilado no México, onde faleceu em 29 de julho de 1983. 

Uma semana depois da morte de Buñuel, a Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM),  onde eu estudava, decidiu homenagear, nesse momento, o cineasta, realizando uma amostra dos seus filmes. No final de cada exibição, um destacado crítico de cinema, fazia uma conferência aula sobre o filme da noite. Meu amigo e eu decidimos ver todos os filmes e assistir às aulas sobre os filmes da mostra. Durante este período, assistimos, pela primeira vez,  os filmes Un Perro Andaluz e La Edad de Oro, os dois primeiros que Luis Buñuel realizou. Neles contou com a ajuda do amigo Salvador Dalí.

Enquanto isso, Orozco e eu decidimos ler e discutir qualquer material que conseguíssemos sobre Buñuel, Dalí e a amizade entre os dois . Naquele tempo remoto, também desejávamos saber o que fosse possível sobre o movimento artístico espanhol de vanguarda e líamos os livros do poeta e dramaturgo, Federico García Lorca (grande amigo dos dois artistas) que foi assassinado pelas forças militares de Francisco Franco que tornou-se o ditador da Espanha. Como era de se esperar, estávamos deslumbrados por conhecer as pinturas de Dalí, os filmes de Luís Buñuel, a poesia  de Garcia Lorca e a arte de Pablo Picasso.  Durante esse período, íamos ao Museu de Antropologia para ver, ao lado dos quadros de Diego Rivera e Frida Kahlo, os quadros de Dalí e a exposição dos trabalhos da coleção particular de Pablo Picasso, intitulada “Os Picassos de Picasso”.  Dos filmes de Buñuel, o que mais nos impressionou, foi o que se intitulava El (O Alucinado).

El é o filme de Luis Buñuel que, de acordo ao conferencista da noite,  melhor refletia o domínio do diretor de todos os registros do melodrama. O roteiro, baseado no romance com o mesmo título da escritora espanhola exilada, Mercedes Pinto, se enfocava na história de Francisco Galván (Arturo de Córdoba) um jovem solteiro, devoto do catolicismo, de alto nível social e ainda virgem. Na Semana Santa, durante a cerimônia do lava-pés na igreja, o olhar de Francisco passeia pelos devotos até parar subitamente nos pés de Glória (Delia Garcés). A partir desse momento ele começa a se apaixonar por ela, procurando conquistá-la por todos os meios,  mesmo que ela já seja namorada de seu amigo, o engenheiro, Raul (Luis Beristáin). A paixão de Francisco que parece nascer dos ciúmes, não para de crescer e a crescente loucura paranoica de Francisco condicionará todo o seu comportamento subsequente.

Buñuel disse sobre o filme El: "quizá es la película dónde más he puesto yo, hay algo de mí en el protagonista", e expressou que era seu filme favorito. No México, se comentava que Buñuel era um homem muito ciumento. A mesma coisa disse a sua esposa, Jeanne Rucar, na sua biografia Memorias de una mujer sin piano.
O filme El continua sendo uma das primeiras obras primas da filmografia de Buñuel. O filme, pouco conhecido no Brasil, é muito conhecido e falado na França, na Argentina e outros países. O filme ficou ainda mais conhecido devido a que o famoso e celebrado Jacques Lacan, o psicanalista francês, amigo de Buñuel, exibia o filme para seus alunos como um exemplo claro de paranoia.

Neste filme, Buñuel mostra as gritantes alienações criadas nos indivíduos pela cultura ocidental e cristã dominante, tais como a religião, o patriarcalismo, o autoritarismo, o machismo, o feitichismo e o culto à propriedade privada. Cenas das igrejas, dos campanários, dos confessionários, dos ritos católicos são constantes e funcionais em todo o desenvolvimento do filme e a crença fascista na superioridade de Deus se destaca quando Francisco compara os seres humanos com os vermes e diz: "Eu gostaria de ser Deus para esmagá-los". Francisco, o personagem de Buñuel, me lembrava o personagem Porfírio Diaz do filme Terra em Transe de Glauber Rocha, um grande admirador da obra cinematográfica de Luis Buñuel.

 Uma das mais brilhantes sequências de cenas do filme começa quando Francisco entra no quarto de Gloria com uma corda, uma agulha, linha e uma lâmina de barbear, com o objetivo de costurar a vagina de Gloria para verificar se ela lhe é fiel. O filme, como era se esperar, mostra no delírio de Francisco as marcas  do surrealismo e do inconsciente freudiano que Buñuel expressava com maestria.

Foi nesse clima que o amigo Orozco e eu decidimos ler as autobiografias de Luis Buñuel e de Salvador Dalí. Assim, por falta de tempo, dividimos o trabalho entre os dois: meu amigo, Orozco, leria a autobiografia de Dalí e eu leria a autobiografia de Luis Buñuel. No final da leitura, eu resumiria a autobiografia de Buñuel para Orozco, e ele resumiria a autobiografia de Dalí para mim.

Lembro-me que Orozco gostou da história de Buñuel que lhe resumi. Mas ficou particularmente impressionado quando sintetizei o relato de Buñuel sobre os acontecimentos ligados  à  seca e a procissão para o santo padroeiro da sua cidade. O principal objetivo da procissão era pedir ao santo para que fizesse chover sobre as plantações das famílias que foram arrasadas pela falta de água. Assim, o pai de Buñuel e os vizinhos passaram uma semana caminhando todos os dias, sob um sol escaldante, pelas ruas da cidade, com o pesado andor sobre os ombros, rezando e pedindo ao santo padroeiro por dias de chuva, mas a chuva não chegava.

Depois de uma semana sem chuva, o pai e os vizinhos,  contrariados,  saíram de casa e caminharam novamente com o santo nos ombros. Quando estavam atravessando a ponte de um pequeno riacho (um riachinho), eles começaram a cantar em voz alta "Uno, dos, tres y el tiempo se acabó" ("Um, dois, três, o tempo se acabou"). Em seguida, jogaram  o santo e andor nas águas do riacho, dando um fim ao sofrimento daquela peregrinação irracional.

Logo depois, meu amigo Orozco,  narrou-me um fato da história de vida da Dalí que me congelou a voz na garganta. Esta é a narrativa: o pai de Dalí: se opôs ao romance do jovem artista com Gala e condenou a sua relação com os artistas surrealistas daquele momento, considerando-os (como grande parte do público), como personagens que tendiam à degeneração moral. A tensão entre Dalí e o pai foi escalando, culminando no enfrentamento pessoal. Depois da publicação, na imprensa, da inscrição que Dalí colocou no desenho “Sagrado Coração de Jesus”, que estava sendo exibido em Paris, o pai já não suportou. O desenho  exibido, incluía uma inscrição que dizia:
"Às vezes, eu cuspo no retrato da minha mãe para me divertir."

Indignado, o pai exigiu-lhe uma retratação pública. Dalí recusou e foi violentamente jogado para fora de casa em dezembro de 1929. Na sequencia seu pai o deserdou e proibiu-o de voltar à Caiaques, na Espanha.

Posteriormente, Dalí contou como, durante esse episódio, deu para o pai um preservativo (uma camisa de Venus) contendo o próprio esperma com as seguintes palavras: "Tome! Agora não te devo nada."

Recentemente, como já mencionei, Orozco escreveu-me lembrando-me daqueles dias no México e fez algumas perguntas. Que opinião tem os estadunidenses de Dalí?  Jorge, se você fosse o psicanalista de Dalí, que hipótese teria para analisar o comportamento dele, a sua relação com a esposa Gala e com Luis Buñuel? Que diagnóstico você faria para começar um  processo de tratamento psicanalítico  do Dalí?

Ainda que não seja psicanalista, as interessantes perguntas do meu amigo, motivou-me a refletir sobre algumas das questões que conectavam o comportamento de Dalí com a psicanálise.

Como muitos sabem, Salvador Dalí foi sempre um personagem escandaloso e polêmico em todos os lugares por onde andou e trabalhou. Quando morou e trabalhou nos EUA, ele continuou sendo uma poderosa fonte de escândalos.

No entanto,  não parece justo que os estadunidenses critiquem o comportamento de Dalí "por ter casado com Gala e manter relações sexuais extra matrimoniais que são conhecidas pelo nome de “ménage à trois". Eu não pratico, nem desejo praticar "ménage à trois", mas julgar Salvador Dalí e suas obras, bem como a sua relação com a Gala, através da lente ideológica e moralista do Puritanismo da mídia estadunidense, me parece errado e uma posição ilegítima. Por quê?

Porque, entre outras razões, as histórias sobre o caráter e o comportamento de Dalí foram transformados em mitos modernos. As diferentes versões dessa história de luta e separação do pai são exemplos da mitologia do personagem de Dalí. Eu relatei aqui uma versão da história, mas  já escutei outras versões que também parecem tão plausíveis quanto a que contei.

Eu, acredito que não é no nível moral, mas sim no nível político ideológico, onde Dalí pode ser julgado de forma mais objetiva e legitima. Por quê? Porque os fatos são inconfundíveis: Dalí era simpático ao regime de Hitler e um defensor do ditador espanhol Francisco Franco cujas forças militares assassinaram seu amigo, o poeta Federico García Lorca.

Salvador Dalí, em Nova York, em 1942, denunciou seu ex-amigo, o cineasta surrealista Luis Buñuel como comunista e ateu, o que levou Buñuel a ser despedido de sua posição no Museu de Arte Moderna de Nova York e, posteriormente, seu nome foi incluído na lista negra da indústria cinematográfica americana.

Por causa das suas declarações e posições políticas a favor dos regimes autoritários fascistas, Dalí foi expulso do movimento surrealista por André Breton (poeta francês, o líder do movimento) com o apoio de artistas surrealistas, como o poeta francês Louis Aragon e muitos outros.

Mas aqui deveria voltar às questões do amigo Orozco e resumir as minhas considerações: se eu fosse o psicanalista de Dalí, uma das minhas hipóteses para trabalhar com ele seria analisar a mente inconsciente do pintor surrealista. Conforme a teoria psicanalítica freudiana, poderíamos afirmar que Dalí não concluiu “as etapas de seu desenvolvimento psíquico sexual”, satisfatoriamente.

Dalí parece, mesmo adulto, estar aprisionado na fase fálica (complexo de Édipo) e precisa tornar-se consciente desse lado inconsciente, para se libertar. Com o fim de justificar a minha hipótese, farei uma pequena lista de quatro situações que me parecem exemplares para sustentá-la, a seguir: Salvador Dalí passou a vida repetindo a primitiva situação triangular formada pela relação entre sua mãe, seu pai e ele próprio. Do ponto de vista da teoria psicanalítica, Dalí esteve sempre dividido entre seu amor pela mãe e o ódio pelo pai. Aqui estão os quatro exemplos que evidenciariam a neurose de Dalí:

1    A constante luta de Dalí contra o pai que resultou na expulsão do pintor da casa dos progenitores. 2) Quando Dalí conheceu e começou a ter um caso com Gala, ela era a esposa de seu amigo, o poeta francês, Paul Éluard. 3) O cineasta surrealista e seu amigo, Luis Buñuel, rompeu a amizade com Dalí, devido à presença de Gala entre eles. 4) Ao longo de sua vida, Dalí nunca se afastou da concorrência gerada pela rivalidade da relação triangular entre pai, mãe e filho, permitindo ser parte constante do "ménage à trois" entre ele, a esposa Gala e a coleção de amantes que Gala teve.

       Ainda que a época denominada pós moderna do capitalismo tardio, seja, de acordo ao crítico marxista Fredric Jameson, contra a história, contra a memória e contra o inconsciente freudiano, os humanos, na minha opinião, ainda contaria com a ajuda das pinturas de Dalí, de Picasso, dos filmes de Buñuel, Hitchcock, dos livros do psicanalista Slajov Zizek e do educador Paulo Freire para continuar apostando na luta marxista pela libertação dos oprimidos contra a  exploração e a dominação imposta pelo sistema capitalista

Artigo publicado no Serato´s Blog (http://setarosblog.blogspot.com.br/)

A charge nossa de cada dia - Quinho


Marinheiro só

Ao narrar a trajetória errática de um ex-fuzileiro naval, Paul Thomas Anderson chega à maturidade em O Mestre, um filme complexo e difícil de rotular
 
por Antônio Xerxenesky
 
Pode parecer estranho, mas houve uma época em que o norte-americano Paul Thomas Anderson era considerado um cineasta experimental. Em Magnólia (1999), apresentou uma repentina chuva de sapos e botou o elenco inteiro para cantar, num momento dramático, uma canção pop de Aimee Mann. No seu trabalho seguinte, Embriagado de Amor (2002), desconstruiu a comédia romântica e fez o ator Adam Sandler ser perseguido por sombras. O resultado foi um filme bizarro, no qual o jogo de cores se revelava peça fundamental.
Após cinco anos de silêncio (Anderson não é nada prolífico), o diretor retornou com Sangue Negro (2007), obra que, perto das mencionadas, aparenta ser muito mais tradicional. A narrativa com ecos de Cidadão Kane presta homenagem à Hollywood antiga e ao cinema focado em atuações poderosas. Um longa incomum, especialmente pelo desfecho de violência catártica, mas sem muitas trucagens ou pirotecnias.
O Mestre, que entra agora em cartaz no Brasil, segue nesta linha: a busca por um trabalho sofisticado, elegante, capaz de nos recordar de que ainda existe inteligência em Hollywood. Desde o início da produção, a história foi alvo de controvérsia nos Estados Unidos por colocar em primeiro plano o surgimento de uma seita muito similar à cientologia, culto que tem como garoto-propaganda Tom Cruise. Tais questões extra-cinematográficas são irrelevantes, pois nada ajudam a decifrar o grande enigma que é o novo longa de P. T. Anderson.

Selvageria Imprevisível
O enredo gira em torno de Freddie,ex-soldado da Marinha interpretado por Joaquin Phoenix, que se desloca sem rumo pela vida, abandonando empregos e mulheres por motivos insondáveis. Acidentalmente, ele conhece um escritor e pensador chamado Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), que vem ganhando popularidade em certos meios por suas técnicas curiosas de terapia, nas quais busca traumas em vidas passadas. Uma relação de amizade – e de mestre e discípulo, apesar de Freddie nunca ler os escritos de Dodd – se forma entre os dois.
É muito fácil dizer que Lancaster é um charlatão e suas teorias não fazem sentido. Mais difícil é apontar se o personagem está ciente disso ou se acredita na sua obra. A ambiguidade é a marca central do roteiro e é visível também na figura de Freddie. Joaquin Phoenix oferece talvez a melhor performance de sua carreira, dedicando-se por completo a dar vida a uma figura da qual nunca sabemos o que esperar. Cada tique facial ou peculiaridade na fala parece indicar uma faceta ainda desconhecida. O ator é lembrado em Hollywood por ser difícil de lidar, e Anderson se vale disso, captando sua selvageria imprevisível. Em diversos momentos,Freddie lembra o “touro indomável” de Robert De Niro capturado por Martin Scorsese – por sinal, um clássico que Anderson homenageou de forma escancarada em Boogie Nights (1997).
Ainda que ele seja um diretor com apurado senso visual, O Mestre é acima de tudo um filme de atores, e as cenas se prolongam nas extensas conversas que permeiam o roteiro, deixando sobrar um silêncio ao mesmo tempo inútil e essencial. Diferentemente de Sangue Negro, aqui não se constrói um clímax e se avança num ritmo tão errático quanto o do protagonista. Apesar de todas as possíveis ligações freudianas (as recorrentes imagens de água são uma das muitas metáforas presentes), fica difícil extrair um significado definido dessa última obra, que é tanto a mais tradicional (em termos de direção) como a mais incomum, complexa de entender e rotular. Talvez isso seja o que chamam de maturidade.
 
Antônio Xerxenesky é autor do romance Areia nos Dentes e do volume de contos A Página Assombrada por Fantasmas.

Revista Bravo
 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Os melhores de 2012

Mentes blindadas, dedos cortados


Ana Estela de Souza Pinto

FOLHA DE SÃO PAULO

SÃO PAULO - É tudo muito rápido.
Um maluco mata 20 crianças numa escola americana e dezenas de empresas saem propagandeando mochilas e coletes à prova de balas.
"Para pais protetores e preocupados", diz o site de um fabricante. E certamente insensíveis ao peso que as crianças já carregam nas costas.
Em São Paulo, mais um prédio de luxo sofre um arrastão e firmas de segurança correm a divulgar seus sistemas biométricos, em que a porta do seu lar só se abre ao contato do dedo indicador direito dos cadastrados.
Anteontem, professores de defesa pessoal ganharam as telas do mundo todo e as escolas da Índia depois que uma moça foi absurdamente estuprada por um grupo de homens.
Que tal vender lingerie antiestupro, metálica, "para pais protetores e preocupados"? Nada contra o empreendedorismo, nem mesmo contra o oportunismo. Mas o mercado de soluções individuais para problemas coletivos é tão ágil quanto inútil.
Se não, vejamos: a não ser que vá à escola de armadura, nenhuma criança será protegida de tiros no crânio, por mais que o comercial de um fabricante mostre uma garotinha ajoelhada segurando a mochila sobre a cabeça como um escudo.
O ladrão que precisar de uma impressão digital para o roubo arrastará consigo o morador. Na melhor das hipóteses. Na pior, ele leva só o dedo.
Já a sugestão bizarra de um cinto de castidade moderno esbarra no complicador óbvio: a dona do equipamento de segurança não poderia estar com a chave do cadeado.
No império do individualismo possessivo, faz sentido que o "cidadão consumidor" -nova vedete dos marquetólogos corporativos e eleitoreiros- se encante com tão mágicas soluções: pague-me uns trocados e eu o manterei a salvo dos horrores lá de fora. Enquanto não inventarem também uma blindagem mental 100% garantida, os que quiserem continuar fingindo que a sociedade e a cultura não existem sempre podem enfiar suas cabeças na areia. De graça.

Dura lex


Ruy Castro

FOLHA DE SÃO PAULO
RIO DE JANEIRO - Passei séculos ouvindo frases como "Decisão da Justiça não se discute. Cumpre-se", "A lei tarda, mas não falha" e "Dura lex sed lex" -a lei é dura, mas é a lei-, esta já com o complemento, "No cabelo, só Gumex". Não me ocorria que pudessem ser contestadas. Supunha-se que, depois de mergulhar nos milhares de páginas de um processo e ouvir todos os envolvidos, testemunhas e suspeitos de praxe, os juízes, à luz de seu conhecimento das leis, tomariam a decisão -olha só a palavra- justa.
Com o tempo e com o cinismo circundante, aprendi outras frases que representavam rachaduras e vazamentos naquelas verdades pétreas. Uma delas: "Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei". Outra: "Todos os homens são iguais perante a lei. Mas alguns são mais iguais do que os outros". E a mais debochada e demolidora, proferida, quem diria, pelo homem que mais legislou neste país, Getúlio Vargas: "A lei, ora, a lei...".
O fato de que a lei não é, afinal, tão indiscutível está sendo demonstrado à exaustão no rescaldo do caso do mensalão. Ouvidas acusação e defesa, dissecados os processos, estabelecidas as condenações (ou absolvições) e determinadas as sentenças, num julgamento aberto e televisionado que durou meses, as decisões dos juízes têm sido tachadas de "tribunal de exceção" e de "condenações sem provas", influenciadas pelo "linchamento da mídia".
Um cartola do PT falou em "chicana", "truculência" e "selvageria", esta "mesmo que recoberta pelo manto do apoio da lei" -imagem que remete perigosamente à figura do relator Joaquim Barbosa. O dito cartola acusou o STF de provocar "grande insegurança jurídica" e de fazer lembrar "os piores tempos que o país já viveu". E, num ousado arroubo, falou em "fascismo e nazismo".
Com tudo isso, esqueça o Gumex. Dura lex sed lex; no cabelo, só Brylcreem.

A preservação da ciência e tecnologia

O crescimento salutar do setor de ciência e tecnologia enfrenta ameaças de retrocesso oriundas de interesses político-partidários

O Brasil conta hoje com um complexo constituído por instituições dedicadas ao desenvolvimento científico e tecnológico, que pode ser considerado como modelo para os países da América Latina, onde o país se destaca como maior produtor de trabalhos científicos.
Em pouco mais de seis décadas, fomos capazes de estabelecer um sistema altamente sinérgico, no qual universidades, institutos e centros de pesquisa e desenvolvimento, agências de fomento, secretarias e ministérios trabalham em conjunto, estabelecem parcerias, interagem com seus congêneres internacionais e produzem conhecimento científico reconhecido internacionalmente.
O elevado grau de organização do sistema possibilitou que o Brasil atingisse a 13ª posição no ranking da produção científica mundial, uma conquista que carrega em si todo o potencial para ser superada, mas que também corre risco de ser derrubada.
Durante os últimos anos, o crescimento salutar do setor de ciência e tecnologia no Brasil tem enfrentado ameaças de retrocesso oriundas, sobretudo, de interesses político-partidários. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), como exemplo, desde sua criação em 1985, já sofreu revezes que o rebaixaram a Secretaria de Estado, ou a fusões com outros ministérios.
O contingenciamento de orçamentos pré-aprovados ou a redução das fontes de financiamento, como os fundos setoriais, também ocorrem com uma frequência perigosa para o setor, que requer planejamento e execução de longo prazo. Portanto, requer visão e ação de política de Estado.
Em todos esses momentos, a comunidade científica brasileira mobilizou-se e, apesar dos obstáculos, tem logrado assistir à preservação da estrutura e à evolução das instituições de pesquisa e das agências de financiamento.
O sistema desenvolveu-se de forma orgânica, evoluiu seguindo as tendências internacionais e as demandas socioeconômicas internas. No pós-guerra, como aconteceu em outros países, a ciência e a tecnologia passaram a integrar definitivamente a agenda governamental, com a criação de instituições como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ambos na década de 1950.
A Capes é uma fundação do Ministério da Educação que se dedica a investir na formação de professores e pesquisadores e na aprovação e avaliação de cursos de pós-graduação stricto sensu. O CNPq, subordinado ao MCTI, desempenha a tarefa de financiar projetos de pesquisa científica e tecnológica, garantir a participação de pesquisadores brasileiros em eventos científicos internacionais, promover a difusão da ciência na sociedade e manter o cadastro atualizado da produção científica nacional por meio da Plataforma Lattes.
Com a criação do programa Ciência sem Fronteiras, que tem possibilitado a ida de centenas de estudantes universitários brasileiros a universidades conceituadas de outros países, a Capes e o CNPq assumiram a missão de administrar esse novo desafio.
A Capes e o CNPq são partes vitais do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia. Partes que interagem entre si e se complementam. No entanto, nos últimos dois anos, assistimos a uma queda preocupante no orçamento do CNPq, assim como no orçamento global do MCTI. Uma queda que não se justifica, dada a importância das ações desenvolvidas por ambos.
Esperamos que as próximas ações governamentais e político-partidárias não representem nova ameaça à estruturação das bases da ciência e tecnologia, pois sua preservação é essencial para o desenvolvimento sustentável do país.

Será a publicidade o motor da História?

JORNALISTA, É PROFESSOR , DA ECA-USP, DA ESPM, EUGÊNIO, BUCCI, JORNALISTA, É PROFESSOR , DA ECA-USP, DA ESPM, EUGÊNIO, BUCCI - O Estado de S.Paulo
 
O filme chileno No, de Pablo Larraín, foi exibido pela primeira vez no Brasil em outubro do ano passado, numa sessão exclusiva para convidados, na abertura da 36.ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Agora, no final de dezembro, entrou em circuito comercial. Grande vencedor da Quinzena dos Realizadores de Cannes 2012, o filme confirma nas salas brasileiras a sua carreira internacional vitoriosa. Agrada a espectadores de várias idades e vários recortes culturais.
Se o leitor habitual desta página A2 do Estadão ainda não viu, deveria ver. O debate retratado na tela é do mais alto interesse para quem procura acompanhar os rumos políticos da democracia. O que é que a empurra numa direção ou noutra? Em que cadinho são sintetizadas as decisões coletivas? Qual o papel que a publicidade - ou, em termos um pouco mais amplos, o chamado marketing político - desempenha nesse jogo?
Para Karl Marx e Friedrich Engels, a luta de classes era o motor da História (grafada com H maiúsculo). Segundo a gente depreende do enredo brilhante de No, a coisa não é bem assim: o motor da história é uma mensagem bonita, vibrante de euforia, que "venda" bem. É nisso que o povo quer embarcar, é isso que o povo quer "comprar". Moral da história (com h minúsculo), o motor da História, prezados camaradas, é a publicidade. Por essas e outras, o filme dá o que pensar - e dá margem a indagações um tanto perturbadoras.
Voltemos ao ponto de partida. No, como bom filme que é, trata de contar direito uma boa história; não tem nada de aula de ciência política, não é seminário de sociologia, não se perde em interpretações acadêmicas sobre os fatos que encadeia com esmero. O cineasta Pablo Larraín reconstitui com verossimilhança impressionante, num andamento de documentário, um fato histórico real: a campanha pelo "Não" (daí o título) realizada pelas oposições chilenas no plebiscito de 1988, que decretou o fim da ditadura de Pinochet. O filme começa deixando claro que o que ocorreu ali foi um episódio, no mínimo, improvável. Internacionalmente pressionado a dar uma roupagem menos truculenta à sua tirania, o general Augusto Pinochet viu-se constrangido a convocar o plebiscito para consultar os cidadãos sobre se eles o queriam (ou não) no poder. No início da campanha o ditador posava de franco favorito, pois detinha o controle férreo sobre os meios de comunicação. Com a autoconfiança típica do leão de chácara que virou dono da boate, Pinochet nem considerava a hipótese de derrota. Nisso os integrantes das oposições concordavam com o carrasco: para quase todos eles, a hipótese de vitória era impensável. Acontece que, para dar uma aparência mais democrática ao plebiscito, o governo precisou conceder às oposições um horário de propaganda na TV. Foi aí que o impensável se pôs em campo. O horário era desfavorável (os filmetes das oposições iam ao ar bem tarde da noite), o ambiente era arredio, mas, mesmo assim, a maré começou a virar.
Por quê?
Porque os comunistas, os socialistas, os perseguidos, os liberais de oposição, o multicolorido balaio de gatos das oposições, foram buscar um publicitário de sucesso para dirigir sua campanha. Esse homem de mercado, por sua vez, recrutou outros bruxos do consumo e da linguagem comercial da TV. Nesse ponto, No fotografa com absoluta nitidez o momento histórico (cuja cronologia varia de país para país) em que o publicitário desbanca o ideólogo no comando da luta política. Em lugar das cenas de espancamentos e de repressão explícita, em vez do desfile das mães chorosas dos milhares de desaparecidos, os publicitários do "No" contrariaram os velhos ideólogos e deram preferência a musiquinhas, piqueniques, trocadilhos, anedotas, o que detonou a ira dos esquerdistas mais conservadores. Alguns deles se retiraram ruidosamente do comitê de campanha, que acusaram de ter-se vendido aos publicitários que degradavam as mais nobres causas humanitárias a apelos vulgares de comercial de sabonete.
Ou de micro-ondas. Não importa. No final, o "No" sagrou-se vencedor, embora num placar apertado: considerados os votos válidos, o "No" conquistou 56% do eleitorado, enquanto o "Si" obteve a adesão de 44% (e nisso está o dado mais intrigante: para 44% dos chilenos, o país sob ditadura ia muito bem, obrigado). A vitória dos publicitários, contudo, não revogou o fundamento daqueles que se opuseram à transformação da campanha do "No" numa campanha publicitária como qualquer outra. Esse debate permanece e, por qualquer caminho que se queira abordá-lo, ele nos conduz ao centro da viabilidade (ou não) do projeto democrático nos nossos dias. Será sólida e sustentável uma democracia em que os argumentos que não cabem em 15 segundos de televisão acabam descartados da agenda política? Que lugar resta para a razão numa comunicação política regida cada vez mais pela lógica do desejo, ou, pior ainda, pelo desejo de consumo?
Alain Touraine viu esse impasse há cerca de 20 anos: "As sociedades complexas e de mudanças rápidas pouco a pouco deixam de ser sociedades de intercâmbio, da comunicação e da argumentação, para serem cada vez mais sociedades da expressão. (...). Cada vez menos tratamos com comunicadores e cada vez mais com atores".
Eis aí uma equação ainda insolúvel. A publicidade infantiliza o seu público, tutelando-o como a um semi-inimputável; não tem parte com a busca radical da verdade, mas com a sedução em prol da venda de produtos, serviços ou ideias. Dirão que a política sempre foi isso, um comércio de ideias, mas, ainda assim, é o caso de perguntar: será essa a emancipação com a qual sonharam os liberais revolucionários do século 18? Ótimo que o "No" tenha vencido no Chile em 1988, mas será que a transformação das causas políticas em mercadorias desejáveis é a nossa mais alta expressão de liberdade?

O Estado de S. Paulo