sábado, 9 de julho de 2011

Doze badaladas - ARTHUR DAPIEVE

Seis razões para uma paixão

Lista de tarefas... Tentar falar do amor à primeira vista, ainda que por um filme, o mais recente de Woody Allen, “Meianoite em Paris”. Amor? Paris? Roland Barthes. Sempre ele. Fragmentos. “Querer escrever o amor é enfrentar a desordem da linguagem: essa região tumultuada onde a linguagem é ao mesmo tempo demais e demasiadamente pouca, excessiva e pobre”, escreveu o professor. “O amor não é nem nunca será a soma de seus diversos fatores”, rabisco no caderno mental. E, no entanto, persiste o paradoxo: há ao menos meia dúzia de razões para nos apaixonarmos por “Meia-noite em Paris”.

Primeira razão: a própria Paris. Algumas pessoas têm uma superdose de beleza quando expostas ao patrimônio cultural de Florença, na Itália. Falta ar, sobram lágrimas, o coração se acelera, a mente alucina. A essa doença psicossomática se dá o nome de “Síndrome de Stendhal”, em honra ao escritor francês que a descreveu. Não sei por que nunca foi catalogado nada semelhante em Paris. Talvez porque fosse dar briga eleger um único escritor para batizá-la. Centenas já exaltaram a cidade. À sua maneira, Woody Allen também o faz nos primeiros minutos de “Meia-noite em Paris”, com a sucessão de cartões-postais que propõem um quiz (onde fica?) ao espectador. Sim, basta olhar para os bulevares para sermos tomados de júbilo, nos congratularmos por estarmos vivos. De tal modo que o santo do diretor cruzou com o de Paris, diferentemente de Barcelona.

Segunda razão: a meia-noite. O simbolismo do horário já foi bastante explorado pelas religiões e pelas artes. Nem hoje, nem amanhã. Um instante suspenso, propício ao trânsito entre este e um outro mundo, entre a Paris dos anos 20 do século XX e a Paris dos anos 10 do século XXI. Só poderia ser o momento em que mais um americano na Cidade-Luz passaria de roteirista frustrado pela vulgaridade reinante em Hollywood a romancista aconselhado pelas melhores cabeças da época dos seus sonhos, de contemporâneo dos “zumbis criptofascistas” (como chama os membros do Tea Party, apoiados por seu quase sogro) a camarada de Ernest Hemingway e Gertrude Stein.

Terceira razão: a simplicidade da trama. Descrito apenas em suas linhas gerais — um californiano em visita a Paris se vê transportado para os anos 20 sempre que soam as 12 badaladas — o roteiro é até meio decepcionante. Allen, porém, tem a graça e o talento para fazê-lo correr em paralelo com o mito do amor verdadeiro. Nada a ver, claro, com aquela perua loura, gostosa e fútil. “Meia-noite em Paris” se nutre, então, de duas inadequações com as quais qualquer espectador pode se identificar: de par e de tempo. Quando as coisas não dão certo no presente, todo mundo fantasia ter nascido na época errada. Funciona tão bem que nem é necessário sacar todas as muitas referências culturais para se apaixonar pelo filme. Sobretudo os mais jovens boiam diante de Zelda Fitzgerald ou de Man Ray, mas o contexto da fábula a todos salva.

Quarta razão: a opção pela comédia. O próprio Allen sempre pareceu depreciar sua veia cômica ao deixá-la escapar em “filmes sérios”, como se só eles pudessem lhe garantir respeito e reconhecimento. Bobagem, claro. As melhores comédias do nova-iorquino vão mais fundo do que muitos dramas de seu ídolo sueco, Ingmar Bergman. E “Meia-noite em Paris” está, desde já, entre os melhores filmes da carreira de Allen. Na verdade, é o melhor desde outra comédia, “Desconstruindo Harry”, de 1997 (“Match point” é um bom exemplar sério no meio do caminho, 2005). Minha piada favorita é a seguinte: o protagonista Gil está numa mesa com Luis Buñuel, Salvador Dalí e Man Ray. Decide abrir seu coração, contar que vem do futuro e está apaixonado no presente. Os três acham tudo muito natural. “Mas vocês são surrealistas!”, desespera-se Gil.

Quinta razão: a direção de atores. Sempre foi um dos pontos altos de Woody Allen. Não à toa, estrelas que não escovam os dentes por menos de US$ 1 milhão fazem fila para trabalhar por meio pretzel em seus filmes. Neles, qualquer diálogo soa natural, até quando um ator sai da tela de cinema nos anos 1930 ou um roteirista pega carona para os anos 1920. No caso de “Meia-noite em Paris”, o encarregado de “bancar o Woody Allen”, com seus trejeitos e neuroses, é Owen Wilson, parceiro usual de Ben Stiller. É duplamente bacana: pelo desempenho em si e por ser um renascimento artístico de Wilson, que tentou se matar em 2007, enquanto se tratava de depressão.

Sexta razão: o drible na nostalgia. Não pretendo avançar nesse tópico, sob pena de estragar parte do prazer de quem ainda não viu o filme. Basta dizer que “Meia-noite em Paris”, ao mesmo tempo em que é um filme nostálgico, reafirma o aqui e o agora, quaisquer que sejam o aqui e o agora. Afinal, sabemos que daqui a décadas muita gente vai desejar ter nascido a tempo de ver Woody Allen tocar clarinete no Carlyle.

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Abri o dia com Roland Barthes e, por amor à simetria, fecho com ele. “Saber que não se escreve para o outro, saber que as coisas que vou escrever não me farão nunca amado por aquele que amo, saber que a escritura não compensa nada, não sublima nada, que ela está precisamente aí onde você não está — é o começo da escritura”, escreveu o professor nos mesmos “Fragmentos de um discurso amoroso” (tradução de Hortênsia dos Santos). Vai escrever bem assim em Paris. A dos anos 1970.

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