sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Os melhores de 2012

Mentes blindadas, dedos cortados


Ana Estela de Souza Pinto

FOLHA DE SÃO PAULO

SÃO PAULO - É tudo muito rápido.
Um maluco mata 20 crianças numa escola americana e dezenas de empresas saem propagandeando mochilas e coletes à prova de balas.
"Para pais protetores e preocupados", diz o site de um fabricante. E certamente insensíveis ao peso que as crianças já carregam nas costas.
Em São Paulo, mais um prédio de luxo sofre um arrastão e firmas de segurança correm a divulgar seus sistemas biométricos, em que a porta do seu lar só se abre ao contato do dedo indicador direito dos cadastrados.
Anteontem, professores de defesa pessoal ganharam as telas do mundo todo e as escolas da Índia depois que uma moça foi absurdamente estuprada por um grupo de homens.
Que tal vender lingerie antiestupro, metálica, "para pais protetores e preocupados"? Nada contra o empreendedorismo, nem mesmo contra o oportunismo. Mas o mercado de soluções individuais para problemas coletivos é tão ágil quanto inútil.
Se não, vejamos: a não ser que vá à escola de armadura, nenhuma criança será protegida de tiros no crânio, por mais que o comercial de um fabricante mostre uma garotinha ajoelhada segurando a mochila sobre a cabeça como um escudo.
O ladrão que precisar de uma impressão digital para o roubo arrastará consigo o morador. Na melhor das hipóteses. Na pior, ele leva só o dedo.
Já a sugestão bizarra de um cinto de castidade moderno esbarra no complicador óbvio: a dona do equipamento de segurança não poderia estar com a chave do cadeado.
No império do individualismo possessivo, faz sentido que o "cidadão consumidor" -nova vedete dos marquetólogos corporativos e eleitoreiros- se encante com tão mágicas soluções: pague-me uns trocados e eu o manterei a salvo dos horrores lá de fora. Enquanto não inventarem também uma blindagem mental 100% garantida, os que quiserem continuar fingindo que a sociedade e a cultura não existem sempre podem enfiar suas cabeças na areia. De graça.

Dura lex


Ruy Castro

FOLHA DE SÃO PAULO
RIO DE JANEIRO - Passei séculos ouvindo frases como "Decisão da Justiça não se discute. Cumpre-se", "A lei tarda, mas não falha" e "Dura lex sed lex" -a lei é dura, mas é a lei-, esta já com o complemento, "No cabelo, só Gumex". Não me ocorria que pudessem ser contestadas. Supunha-se que, depois de mergulhar nos milhares de páginas de um processo e ouvir todos os envolvidos, testemunhas e suspeitos de praxe, os juízes, à luz de seu conhecimento das leis, tomariam a decisão -olha só a palavra- justa.
Com o tempo e com o cinismo circundante, aprendi outras frases que representavam rachaduras e vazamentos naquelas verdades pétreas. Uma delas: "Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei". Outra: "Todos os homens são iguais perante a lei. Mas alguns são mais iguais do que os outros". E a mais debochada e demolidora, proferida, quem diria, pelo homem que mais legislou neste país, Getúlio Vargas: "A lei, ora, a lei...".
O fato de que a lei não é, afinal, tão indiscutível está sendo demonstrado à exaustão no rescaldo do caso do mensalão. Ouvidas acusação e defesa, dissecados os processos, estabelecidas as condenações (ou absolvições) e determinadas as sentenças, num julgamento aberto e televisionado que durou meses, as decisões dos juízes têm sido tachadas de "tribunal de exceção" e de "condenações sem provas", influenciadas pelo "linchamento da mídia".
Um cartola do PT falou em "chicana", "truculência" e "selvageria", esta "mesmo que recoberta pelo manto do apoio da lei" -imagem que remete perigosamente à figura do relator Joaquim Barbosa. O dito cartola acusou o STF de provocar "grande insegurança jurídica" e de fazer lembrar "os piores tempos que o país já viveu". E, num ousado arroubo, falou em "fascismo e nazismo".
Com tudo isso, esqueça o Gumex. Dura lex sed lex; no cabelo, só Brylcreem.

A preservação da ciência e tecnologia

O crescimento salutar do setor de ciência e tecnologia enfrenta ameaças de retrocesso oriundas de interesses político-partidários

O Brasil conta hoje com um complexo constituído por instituições dedicadas ao desenvolvimento científico e tecnológico, que pode ser considerado como modelo para os países da América Latina, onde o país se destaca como maior produtor de trabalhos científicos.
Em pouco mais de seis décadas, fomos capazes de estabelecer um sistema altamente sinérgico, no qual universidades, institutos e centros de pesquisa e desenvolvimento, agências de fomento, secretarias e ministérios trabalham em conjunto, estabelecem parcerias, interagem com seus congêneres internacionais e produzem conhecimento científico reconhecido internacionalmente.
O elevado grau de organização do sistema possibilitou que o Brasil atingisse a 13ª posição no ranking da produção científica mundial, uma conquista que carrega em si todo o potencial para ser superada, mas que também corre risco de ser derrubada.
Durante os últimos anos, o crescimento salutar do setor de ciência e tecnologia no Brasil tem enfrentado ameaças de retrocesso oriundas, sobretudo, de interesses político-partidários. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), como exemplo, desde sua criação em 1985, já sofreu revezes que o rebaixaram a Secretaria de Estado, ou a fusões com outros ministérios.
O contingenciamento de orçamentos pré-aprovados ou a redução das fontes de financiamento, como os fundos setoriais, também ocorrem com uma frequência perigosa para o setor, que requer planejamento e execução de longo prazo. Portanto, requer visão e ação de política de Estado.
Em todos esses momentos, a comunidade científica brasileira mobilizou-se e, apesar dos obstáculos, tem logrado assistir à preservação da estrutura e à evolução das instituições de pesquisa e das agências de financiamento.
O sistema desenvolveu-se de forma orgânica, evoluiu seguindo as tendências internacionais e as demandas socioeconômicas internas. No pós-guerra, como aconteceu em outros países, a ciência e a tecnologia passaram a integrar definitivamente a agenda governamental, com a criação de instituições como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ambos na década de 1950.
A Capes é uma fundação do Ministério da Educação que se dedica a investir na formação de professores e pesquisadores e na aprovação e avaliação de cursos de pós-graduação stricto sensu. O CNPq, subordinado ao MCTI, desempenha a tarefa de financiar projetos de pesquisa científica e tecnológica, garantir a participação de pesquisadores brasileiros em eventos científicos internacionais, promover a difusão da ciência na sociedade e manter o cadastro atualizado da produção científica nacional por meio da Plataforma Lattes.
Com a criação do programa Ciência sem Fronteiras, que tem possibilitado a ida de centenas de estudantes universitários brasileiros a universidades conceituadas de outros países, a Capes e o CNPq assumiram a missão de administrar esse novo desafio.
A Capes e o CNPq são partes vitais do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia. Partes que interagem entre si e se complementam. No entanto, nos últimos dois anos, assistimos a uma queda preocupante no orçamento do CNPq, assim como no orçamento global do MCTI. Uma queda que não se justifica, dada a importância das ações desenvolvidas por ambos.
Esperamos que as próximas ações governamentais e político-partidárias não representem nova ameaça à estruturação das bases da ciência e tecnologia, pois sua preservação é essencial para o desenvolvimento sustentável do país.

Será a publicidade o motor da História?

JORNALISTA, É PROFESSOR , DA ECA-USP, DA ESPM, EUGÊNIO, BUCCI, JORNALISTA, É PROFESSOR , DA ECA-USP, DA ESPM, EUGÊNIO, BUCCI - O Estado de S.Paulo
 
O filme chileno No, de Pablo Larraín, foi exibido pela primeira vez no Brasil em outubro do ano passado, numa sessão exclusiva para convidados, na abertura da 36.ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Agora, no final de dezembro, entrou em circuito comercial. Grande vencedor da Quinzena dos Realizadores de Cannes 2012, o filme confirma nas salas brasileiras a sua carreira internacional vitoriosa. Agrada a espectadores de várias idades e vários recortes culturais.
Se o leitor habitual desta página A2 do Estadão ainda não viu, deveria ver. O debate retratado na tela é do mais alto interesse para quem procura acompanhar os rumos políticos da democracia. O que é que a empurra numa direção ou noutra? Em que cadinho são sintetizadas as decisões coletivas? Qual o papel que a publicidade - ou, em termos um pouco mais amplos, o chamado marketing político - desempenha nesse jogo?
Para Karl Marx e Friedrich Engels, a luta de classes era o motor da História (grafada com H maiúsculo). Segundo a gente depreende do enredo brilhante de No, a coisa não é bem assim: o motor da história é uma mensagem bonita, vibrante de euforia, que "venda" bem. É nisso que o povo quer embarcar, é isso que o povo quer "comprar". Moral da história (com h minúsculo), o motor da História, prezados camaradas, é a publicidade. Por essas e outras, o filme dá o que pensar - e dá margem a indagações um tanto perturbadoras.
Voltemos ao ponto de partida. No, como bom filme que é, trata de contar direito uma boa história; não tem nada de aula de ciência política, não é seminário de sociologia, não se perde em interpretações acadêmicas sobre os fatos que encadeia com esmero. O cineasta Pablo Larraín reconstitui com verossimilhança impressionante, num andamento de documentário, um fato histórico real: a campanha pelo "Não" (daí o título) realizada pelas oposições chilenas no plebiscito de 1988, que decretou o fim da ditadura de Pinochet. O filme começa deixando claro que o que ocorreu ali foi um episódio, no mínimo, improvável. Internacionalmente pressionado a dar uma roupagem menos truculenta à sua tirania, o general Augusto Pinochet viu-se constrangido a convocar o plebiscito para consultar os cidadãos sobre se eles o queriam (ou não) no poder. No início da campanha o ditador posava de franco favorito, pois detinha o controle férreo sobre os meios de comunicação. Com a autoconfiança típica do leão de chácara que virou dono da boate, Pinochet nem considerava a hipótese de derrota. Nisso os integrantes das oposições concordavam com o carrasco: para quase todos eles, a hipótese de vitória era impensável. Acontece que, para dar uma aparência mais democrática ao plebiscito, o governo precisou conceder às oposições um horário de propaganda na TV. Foi aí que o impensável se pôs em campo. O horário era desfavorável (os filmetes das oposições iam ao ar bem tarde da noite), o ambiente era arredio, mas, mesmo assim, a maré começou a virar.
Por quê?
Porque os comunistas, os socialistas, os perseguidos, os liberais de oposição, o multicolorido balaio de gatos das oposições, foram buscar um publicitário de sucesso para dirigir sua campanha. Esse homem de mercado, por sua vez, recrutou outros bruxos do consumo e da linguagem comercial da TV. Nesse ponto, No fotografa com absoluta nitidez o momento histórico (cuja cronologia varia de país para país) em que o publicitário desbanca o ideólogo no comando da luta política. Em lugar das cenas de espancamentos e de repressão explícita, em vez do desfile das mães chorosas dos milhares de desaparecidos, os publicitários do "No" contrariaram os velhos ideólogos e deram preferência a musiquinhas, piqueniques, trocadilhos, anedotas, o que detonou a ira dos esquerdistas mais conservadores. Alguns deles se retiraram ruidosamente do comitê de campanha, que acusaram de ter-se vendido aos publicitários que degradavam as mais nobres causas humanitárias a apelos vulgares de comercial de sabonete.
Ou de micro-ondas. Não importa. No final, o "No" sagrou-se vencedor, embora num placar apertado: considerados os votos válidos, o "No" conquistou 56% do eleitorado, enquanto o "Si" obteve a adesão de 44% (e nisso está o dado mais intrigante: para 44% dos chilenos, o país sob ditadura ia muito bem, obrigado). A vitória dos publicitários, contudo, não revogou o fundamento daqueles que se opuseram à transformação da campanha do "No" numa campanha publicitária como qualquer outra. Esse debate permanece e, por qualquer caminho que se queira abordá-lo, ele nos conduz ao centro da viabilidade (ou não) do projeto democrático nos nossos dias. Será sólida e sustentável uma democracia em que os argumentos que não cabem em 15 segundos de televisão acabam descartados da agenda política? Que lugar resta para a razão numa comunicação política regida cada vez mais pela lógica do desejo, ou, pior ainda, pelo desejo de consumo?
Alain Touraine viu esse impasse há cerca de 20 anos: "As sociedades complexas e de mudanças rápidas pouco a pouco deixam de ser sociedades de intercâmbio, da comunicação e da argumentação, para serem cada vez mais sociedades da expressão. (...). Cada vez menos tratamos com comunicadores e cada vez mais com atores".
Eis aí uma equação ainda insolúvel. A publicidade infantiliza o seu público, tutelando-o como a um semi-inimputável; não tem parte com a busca radical da verdade, mas com a sedução em prol da venda de produtos, serviços ou ideias. Dirão que a política sempre foi isso, um comércio de ideias, mas, ainda assim, é o caso de perguntar: será essa a emancipação com a qual sonharam os liberais revolucionários do século 18? Ótimo que o "No" tenha vencido no Chile em 1988, mas será que a transformação das causas políticas em mercadorias desejáveis é a nossa mais alta expressão de liberdade?

O Estado de S. Paulo