sábado, 24 de março de 2012

Fazendo a sua parte - Zuenir Ventura

A reportagem de Eduardo Faustinino “Fantástico”, revelando as fraudes no sistema de saúde, prova
que a imprensa está fazendo a sua parte. Sem qualquer protecionismo ou espírito corporativo, pode-se afirmar que não há um grande escândalo no país que não seja denunciado ou noticiado por algum jornal, revista, emissora de rádio, de TV ou site. Ela pode pecar por excesso, não por omissão. O trabalho de Faustini desfaz a lenda saudosista de que hoje não há mais lugar na mídia para grandes reportagens, que bom era o jornalismo de antigamente. Engano.

Com criatividade, paciência e argúcia, ele fez um dos mais contundentes libelos contra a corrupção, sem aparecer e sem precisar usar um adjetivo sequer, passando a palavra aos próprios personagens para se confessarem e se incriminarem. Nada é contado por ele, mas mostrado ao telespectador sem mediação ou retoque, didaticamente. Assim, desvenda-se não só o mecanismo dos desvios — a técnica, o modus operandi — como a cultura que envolveseus autores. Em meio a gargalhadas, a pândega representante de uma das empresas corruptas recorre, na maior desfaçatez, à “ética do mercado”; o sócio de outra fornecedora fala com orgulho no exemplo de conduta que “deixo pros meus filhos”. O terceiro detalha como será entregue o dinheiro, disfarçado em “caixas de uísque”. Tudo muito natural, como se fossem práticas legítimas realizadas em clima de absoluta normalidade. Assistiu-se a um impressionante festival de hipocrisia, cinismo e escárnio que deveria estarrecer e revoltar nossas instituições republicanas.

Por que a Justiça (e também o Congresso) não faz a sua parte? Para só ficar nesse caso — deixando de lado os muitos e velhos escândalos famosos que continuam impunes — das quatro empresas corruptas mostradas no “Fantástico”, pelo menos duas — Locanty e Rufolo — vêm há 15 anos lesando hospitais e prefeituras, negociando propina para obter vantagens. Será que o destino delas e de todas as outras comprometidas até o pescoço é não pagar pelo mal que fizeram? Não é normal que, apesar das evidências que a mídia costuma escancarar, o Brasil continue sendo o país do “nada ficou provado”.

domingo, 11 de março de 2012

Marcelo Gleiser - Será o mundo uma ideia?

Para Platão, a essência da realidade é percebida pela razão; isso deu à mente do homem um status semidivino



"A mente humana é mais incrível do que o Universo", disse-me outro dia minha filha adolescente. "Por que?" perguntei. "Ora, tudo começa nas nossas cabeças. Sem nossas mentes, não existiria um Universo."
"Será isso mesmo?", perguntei-me em silêncio. A rixa entre o que é e o que é percebido é tão antiga quanto a filosofia. Tem algo a ver com a pergunta "se uma árvore cai na floresta e ninguém está lá para ouvir, ela faz barulho?" (adaptada aqui). Mas é mais complexa.

Platão tornou explícita a divisão entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos. No seu famoso "Mito da Caverna", imaginou um grupo de prisioneiros acorrentados por toda a vida numa caverna. Podiam apenas olhar para uma parede, onde viam sombras projetadas por um fogo que queimava atrás deles. Com isso, sua percepção da realidade era profundamente distorcida, visto que nunca podiam olhar para os objetos que criavam as sombras. Apenas por meio de seus sentidos, jamais poderiam capturar a verdade sobre o mundo.

Platão usa a alegoria para argumentar que apenas o pensamento puro, livre das distorções da percepção sensorial, pode nos revelar verdades absolutas, imutáveis.

Segundo ele, a essência da realidade só pode ser percebida pela razão. Com isso, deu à mente humana um status semidivino, a ponte por onde chegamos ao absoluto. Para Platão, a essência do real é encapsulada por formas abstratas. Conhecê-las é chegar mais perto da verdade. Por exemplo, todas as mesas têm a forma de mesa, mesmo que os detalhes sejam diferentes. Apenas a ideia de um círculo é um círculo perfeito. Qualquer representação dele será imperfeita.

Dada a sua conexão com a busca pela verdade, não é surpreendente que as ideias de Platão tenham influenciado tanto cientistas quanto teólogos. Se as formas têm estrutura geométrica, a matemática (que estuda suas propriedades) segue em direção à verdade. Se a linguagem da natureza é a matemática, como afirmou Galileu, quanto mais as ciências físicas forem fundamentadas na matemática, mais perto da verdade estarão.

Essas ideias inspiraram alguns dos grandes nomes da ciência, de Copérnico e Kepler à Planck e Einstein. E continuam a fazê-lo, em particular para físicos que trabalham com teorias que tentam explicar toda a estrutura física do Universo, como a teoria das supercordas.

Para teólogos inspirados por Platão, como o genial Nicolau de Cusa, que viveu no século 15, a perfeição existe apenas em Deus. Com essa ideia, Cusa supôs que a Terra não poderia ser o centro do Universo. Cusa também não levava a sério a possibilidade de humanos obterem verdades absolutas. Para ele, elas estão na essência de Deus, que é incompreensível aos humanos.

Se a noção do Deus Geômetra não é mais muito popular, a do Homem Geômetra permanece firme e forte, e está por trás de grandes descobertas científicas e matemáticas.

Sem nossas mentes nada disso seria possível. Imaginamos e compreendemos o Universo com elas. Por outro lado, talvez seja bom levar a sabedoria de Cusa a sério e lembrar que o que criamos e entendemos é expressão de nossa criatividade, tendo pouco ou nada a ver com verdades finais e absolutas.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita". Facebook: goo.gl/93dHI

Josué Gomes da Silva - Sem P&D não há futuro

Num cenário mundial de crise, em que o crescimento do consumo aguça o apetite dos competidores internacionais pelo nosso mercado, a perda de competitividade da indústria é um tema presente e preocupante.

Enfrentamos práticas legalmente questionáveis e desleais de países que colocam suas mercadorias a preços artificiais. O tsunami de dólares, cujo epicentro é a expansão monetária nos países desenvolvidos, atraído por nossas generosas taxas de juros, contribui para sobrevalorizar o câmbio, agravando o quadro e somando-se ao custo Brasil.

Por outro lado, em um hercúleo esforço para aumentar sua competitividade, nossa indústria tem aportado crescentes recursos no desenvolvimento de novas tecnologias e na capacitação de recursos humanos. Mas poderia investir muito mais em pesquisas, inovação e ciência, se não fossem os ônus trazidos por carga tributária, juros, infraestrutura cara e precária e demais ineficiências da economia.

É urgente e imperiosa a solução para tais gargalos. Uma vez implementada, criará condições isonômicas de competição para nossas empresas. Mas o que garantirá a competitividade futura da indústria será o investimento em P&D (pesquisa e desenvolvimento).

Felizmente, surge uma possibilidade de incremento: a iniciativa conjunta do governo e da CNI (Confederação Nacional da Indústria) para criar a Embrapi (Empresa Brasileira de Pesquisas Industriais).
Com baixo custo para o Estado, expressiva participação do universo corporativo e somando visão empresarial e espírito da academia, a organização deverá tornar-se legítima e ser importante parceria público-privada no aproveitamento das estruturas de pesquisa, inovação e desenvolvimento dos diversos segmentos do setor manufatureiro.

Ótimo pressuposto para acreditarmos no seu sucesso é a existência da vitoriosa Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), que promoveu uma revolução de produtividade e avanço do agronegócio brasileiro, contribuindo para que ele se tornasse um dos grandes pilares da economia e fosse responsável, ao lado das commodities minerais, pelo superavit comercial. Esperamos que a Embrapi faça pela indústria o mesmo que a bem-sucedida Embrapa fez pelo agronegócio.

A criação da Embrapi, na sequência da instituição do programa Ciência sem Fronteiras, poderá dar musculatura para o Brasil em P&D. As metas desse programa de concessão, até 2014, de milhares de bolsas de estudo em boas universidades internacionais para pesquisadores e estudantes de nível médio deverão garantir recursos humanos aos centros de pesquisa do país e tornar a inovação o grande diferencial competitivo do Brasil.

Eliane Cantanhêde - Recuo dos recuos

BRASÍLIA - Houve um festival de recuos na semana passada. Seria cômico, se não fosse trágico. Comecemos pelo Supremo. Na quarta, por 8 a 1, considerou inconstitucional o Instituto Chico Mendes, criado por uma medida provisória aprovada sem passar por uma comissão especial de deputados e senadores. Na quinta, por 7 a 2, voltou atrás. A exigência de comissões para MPs passou a ser só a partir de agora.Mantida a primeira votação, seria criado um limbo jurídico para cerca de 560 MPs sujeitas a questionamento. Exemplos: Bolsa Família, ProUni, lei do salário mínimo, transgênicos, leis da Copa e da Olimpíada e vai por aí afora. Um caos, portanto.Outro recuo foi na cobrança de multa para empresas que paguem salários diferentes para mulheres e homens em funções iguais. Na quarta, a Câmara aprovou, Dilma comemorou e até anunciou que iria pes-soalmente ao Congresso para a sanção. Na quinta, líderes governistas no Senado acataram o chororô patronal e a Casa Civil subitamente passou a achar o texto "mal redigido".Conclusão: o projeto, tão comemorado, subiu no telhado. Era para ser um, vai ser outro. E sabe-se lá quando. Dilma vai ao Congresso, mas sem sancionar coisa nenhuma.Um terceiro vexame começou com a Fifa dizendo que o Brasil merece "um chute no traseiro". Depois alegou que a tradução estava errada (certamente, a culpa foi da imprensa...) e, enfim, pediu desculpas. Aldo Rebelo (Esporte) atacou e recuou, aceitando as desculpas. Ficou o dito pelo não dito, todo mundo com a garganta arranhando.E não parou aí: o Senado derrotou em votação secreta o candidato do peito de Dilma para a ANTT (agência de transportes terrestres). Agora é ver quem assume o voto e quem recua: "Eu?! Eu votei a favor!". Sem anonimato, a conta de 36 a 31 fecha?Um ET que desembarcasse aqui acharia tudo surreal. Como brasileiros, já estamos acostumados... elianec@uol.com.br

Instruções da FIFA - LUIZ FERNANDO VERISSIMO

Chegaram as instruções da Fifa para como devemos nos comportar durante a Copa do Mundo de 2014. Os brasileiros que não respeitarem as recomendações da Fifa podem ser multados ou, dependendo da natureza da falta, sofrerem sanções mais graves. Tome nota.

Começando pela recepção a autoridades e delegações estrangeiras, nos aeroportos: devemos refrear nossa mania de não apenas apertar a mão como dar uma batidinha no ombro, o que denota uma intimidade que não existe e pode constranger o visitante.

A Fifa aceita que se organizem recepções festivas aos estrangeiros, já que, afinal, eles estarão chegando na terra do carnaval, mas pede moderação. As baterias de escola de samba devem se apresentar nos aeroportos só com os instrumentos mais leves, que não reverberem tanto,e as mulatas devem cuidar para não ofender os recém-chegados com trajes muito sumários. Quer dizer, nada de bumbo ou tapa-sexo.

Na questão da vestimenta: a Fifa faz restrições ao conjunto bermudas/shortinhos e havaianas. Não o proíbe totalmente mas prefere que ele não seja usado em ocasiões como coquetéis e recepções oficiais, ainda mais que o Blatter estará de gravata. Saias curtas para mulheres serão toleradas desde que a distância entre cintura e barra da saia não seja menor do que 18 centímetros. Haverá fiscais da Fifa em locais de congraçamento social para fazerem a medida. Os penteados e as tatuagens também serão controlados e a Fifa recomenda que a nação inteira dedique-se a regimes alimentares e exercícios físicos para emagrecer até 2014, porque do jeito que estamos não dá.

A Fifa observou que os brasileiros falam muito alto em restaurantes. Estabelecerá um limite de decibéis que se for ultrapassado levará ao fechamento do estabelecimento e à internação da clientela em cursos intensivos de locução e etiqueta, pelo menos até o fim da Copa.

A Fifa estuda uma mudança no nosso nome, de República Federativa do Brasil para Estados Unidos do Brasil, ou – levando em conta que a língua mais falada por aqui já é o inglês – Estados Unidos da América Legendado. Também pensa em mudar as nossas cores, porque verde e amarelo, francamente. Mas isso fica para outra etapa, quando a Fifa reorganizará os estados brasileiros, inclusive suprimindo alguns, e intervirá na nossa taxa de juros.

Finalmente, a Fifa não está contente com o nosso governo. Acha a Dilma muito mandona, mais mandona do que ela, e já está providenciando sua substituição.

Proust e Big Bertha - LUIZ FERNANDO VERISSIMO

O grande canhão construído pelos alemães tinha o apelido da mulher de Gustav Krupp O grande canhão construído pelos alemães para arrasar fortificações inimigas na I Guerra Mundial era chamado de Big Bertha e devia seu apelido à mulher de Gustav Krupp, chefe da indústria que o produzira. Não, presume-se, porque Bertha Krupp parecesse um canhão. Nenhuma arma construída até então tinha o mesmo poder, e o Big Bertha fez estragos inéditos antes de ser neutralizado pelos aliados. Uma versão modificada do Big Bertha, com um alcance então inimaginável de 130 quilômetros, foi usada pelos alemães para bombardear Paris em 1918, quase no fim da Grande Guerra. Não fez muitos estragos, pelo menos se comparados ao rastro de entulhos que tinha deixado na Bélgica e em outros lugares. Mas fez o bastante para enervar a cidade. Em 1918 Marcel Proust estaria burilando o texto de À Sombra das Raparigas em Flor, parte da sua obra Em Busca do Tempo Perdido. Do seu apartamento no Boulevard Haussmann ele ouviria os estrondos do bombardeio? Seu apartamento estaria no raio de alcance do grande canhão? Ou seja, havia a possibilidade do “Big Bertha” intrometer-se no trabalho do escritor como um personagem inesperado e transformar em cinzas o trabalho, o apartamento e o próprio Proust? Há referências passageiras à guerra no Em Busca do Tempo Perdido mas não se fica sabendo o efeito que o bombardeio de Paris teve sobre o autor e seu cotidiano. E nunca saberemos a que distância o “Big Bertha” esteve de alterar a história da literatura universal. Mas se o Proust não nos conta, podemos imaginar. Não é impossível que, numa noite tornada insone pelo rufar longínquo das explosões, Proust tenha conjurado o próprio canhão para a sua cabeceira, e reclamado: – Não consigo dormir. Não consigo escrever. Você não se dá conta do que está fazendo com a minha sensibilidade, e por conseguinte, com a minha literatura, sem falar na minha vida? – Bobagem – diz o canhão, no seu alemão metálico. – Minhas balas estão caindo longe daqui, nos bairros pobres, onde ninguém é escritor. As reverberações das minhas explosões mal mexem com sua cortinas rendadas. – Você não vê? Toda a minha literatura é feita, de um jeito ou de outro, dos pequenos movimentos das minhas cortinas rendadas, do tilintar evocativo do meu jogo de chá. É inadmissível que minhas cortinas estejam esvoaçando e minhas xícaras tremendo pelo poder de uma máquina de guerra, em vez do poder da minha memória. – Deixa ver se eu entendi. Você quer que a guerra pare para poder se lembrar melhor. Recuperar o seu precioso tempo perdido é mais importante do que o destino da Europa e o futuro da Alemanha? Ora, vá dormir, Marcel. – Dormir como, com Paris sob bombardeio? – Isto não vai durar muito. Esta guerra está no fim. Os Krupp ganharam mas a Alemanha perdeu. Só estamos dando os últimos tiros para não perder a mão. E daqui a alguns anos, voltaremos. – Você e eu não podemos existir no mesmo mundo, canhão. Marcel Proust e Big Bertha são antônimos. Ou a arte ou a estupidez humana, uma das duas terá que prevalecer, porque a outra será uma mentira. – Engano seu, Marcel. Vamos conviver por séculos. O canhão se levanta para ir embora e pergunta: – Posso pedir uma coisa, já que lhe fiz o favor de não bombardear o Boulevard Haussmann? – Peça. – Me ponha no seu livro?

Vem aí o Estatuto da Palavra - JOÃO UBALDO RIBEIRO

Para mim, é sinal de atraso, mas acho que sou minoria. Estamos atravessando um interessante processo sociopolítico, em que o comportamento pessoal e particular é cada vez mais controlado, com a nobre finalidade de nos proteger, geralmente de nós mesmos. Já imaginei várias possíveis consequências disso, inclusive a criação das figuras da ortocópula e da cacocópula. Não, o Estado não instalará câmeras de tevê nas alcovas, para monitorar a intimidade dos casais. Só creio que isso pudesse acontecer, ainda que muito remotamente, em São Paulo, onde hoje é bem mais fácil ser assaltante do que fumante. Se o assaltante estiver fumando, duvido que assalte qualquer coisa em Congonhas, por exemplo, porque, assim que passar por baixo da marquise, um ou dois policiais o pegarão. Já assalto simples, sem cigarro, é outra coisa.Não haverá necessidade da monitoração, a não ser por ordem judicial. O Estado definiria uma cópula otimizada, numa escala, vamos dizer, de um a cinco. Nessa faixa, teríamos a ortocópula. Passando de cinco, já se começaria a pisar o arriscado terreno da cacocópula. A iniciativa da ação estatal seria nos mesmos moldes da lei da palmada. O cônjuge atingido poderia denunciar o autor da cacocópula, ou isso poderia caber a quem quer que tivesse condição de levantar suspeitas, tais como vizinhos e parentes. Se o casal vizinho tem uma trilha sonora exuberante durante suas conjunções carnais, aludindo, em voz audível através de um copo na parede, a práticas consideradas inaceitáveis pelos padrões oficiais, o longo braço da lei pode alcançá-lo. Mesmo que tanto ela quanto ele garantam que fazem aquilo somente entre os dois e gostam desse jeito, serão classificados como anormais e levados a tratamento psiquiátrico. Não se obtendo êxito, paciência. Compete ao Estado zelar pelo bem deles e, portanto, o divórcio será obrigatório, podendo ambos inscrever-se no programa governamental "Refaça Sua Vida", que permitirá novo casamento aos que comprovarem ter abandonado atos sexuais ilícitos. Os filhos estarão bem entregues a parentes e, na falta destes, a alguma das exemplares instituições que o Estado mantém para a guarda e educação de menores desamparados.Agora há novamente paladinos da sociedade perfeita, o que lá seja isso, que querem censurar dicionários. De vez em quando, aparece um desses. Censurar a lexicografia é uma curiosa inovação. Dicionário é um trabalho lexicográfico, não uma peça normativa. O lexicógrafo não concorda ou discorda do uso de uma palavra ou expressão qualquer. Obedecendo a critérios tão objetivos e neutros quanto possível, constata o uso dessa palavra ou expressão e tem a obrigação de registrá-la. Eliminar do dicionário uma palavra lexicograficamente legítima não só é uma violência despótica, como uma inutilidade, pois a palavra sobreviverá, se tiver funcionalidade na língua, para que segmento seja.Não se pode legislar o funcionamento da língua. O que se pode, no máximo, é regular a chamada norma culta, que poderia ter qualquer outro nome, porque é destinada apenas a manter um pouco da estabilidade da comunicação necessária à sociedade, desde o convívio interpessoal aos documentos de uso comum, da propaganda às leis. Se não fosse assim, dentro de pouco tempo a comunicação verbal seria quase impossível. De resto, a língua é viva e livre e ninguém manda nela, nem mesmo as ditaduras. E não insulta ninguém, depende para isso de seus usuários, que criam o que é considerado ofensa.Mas os usuários são renitentes, de forma que, como no caso da cópula, isso tem que ser regulado, não é possível permitir que o dicionário registre termos que poderiam ofender algum indivíduo ou categoria. Acho que tem muita limpeza a ser feita e agora mesmo me ocorrem cretino, imbecil, idiota, boçal e outras palavras muito usadas para insultos, que, ainda por cima, são empregadas erroneamente, pois sabe-se atualmente que o boçal não tem culpa de sua boçalidade. Há muita gente que acha que se trata de um triste problema genético e todo boçal é uma vítima que, assim como o bandido, foi marginalizada (ou excluída, que está mais na moda) e sofreu bullying na infância.Urge também o banimento de palavras que agravem povos irmãos, mesmo que hoje seus países não existam mais politicamente, como beócios e capadócios. Os já citados cretinos são outro caso deplorável, pois, para grande vergonha nossa, a palavra vem do francês crétin, a qual, por sua vez, vejam como o mundo dá voltas - se originou de chrétien, ou seja, cristão. Patenteia-se aí um claro insulto a toda a cristandade e cretino merece dupla proibição. Baiano burro (aliás, mentalmente prejudicado, para não ofender o burro e incutir nas crianças desprezo por um animal tão útil à humanidade) nasce morto, bem sei, mas não se fazem mais baianos como antigamente e não duvido que surja um grupo na Bahia, empenhado em abolir termos e expressões como "baianada" e "gelo de baiano". E certamente apoiarão seus irmãos paulistas na justa revolta destes, ao serem informados de que lombo de carne de boi é chamado na Bahia de "paulista" e que muitos baianos, a cada dia, dizem casualmente "hoje eu vou comer um paulista lá em casa".Com os dicionários expurgados, não mais compreenderemos livros escritos antes desta era. É um preço pequeno a pagar, para nos livrarmos de uma herança maldita e tornar nossa língua própria para os anjos que em breve seremos. Aguardo agora normas sobre as artes. As artes deverão ser obrigadas à imparcialidade e a conceder espaço igual a todos. Assim, se o vilão de um romance for católico e o mocinho evangélico, será exigida, concomitantemente, uma versão com os papéis invertidos. Se um samba falar que "minha nega me traiu", vai ter que haver outra versão, com a mesma melodia, cantando "minha loura me chifrou". E por aí vamos, ainda chegamos ao primeiro mundo.

PERFIL: NANÁ VASCONCELOS - Ana Clara Brant‏

Um cara de personalidade Naná Vasconcelos orgulha-se de não pertencer a nenhum movimento e de ter construído carreira solo convivendo com todas as tribos. Músico celebra parcerias e fala de projetos


Ana Clara Brant


“Nunca fui do Clube da Esquina. Nunca fui do Som Imaginário. Eu sou eu. Sou Naná.” O autor da frase é um artista pernambucano de 67 anos, tido por muitos como o melhor percussionista do planeta: Naná Vasconcelos. Desde menino, quando batucava em tudo o que via pela frente no Recife, onde nasceu e cresceu, ele já sabia que queria isso para a vida toda.Apesar de ter se especializado em berimbau, Naná aprendeu a tocar praticamente todos os instrumentos de percussão, inclusive os mais inusitados – das panelas à água. “Outro dia mesmo, toquei em penicos. Percussão é aquela coisa de feeling, intuição. Você pode me dar um bolero, uma música clássica, e crio ali na hora. Nunca frequentei escola musical. Participo de cursos e workshops para me aperfeiçoar, mas aprendi tudo sozinho. Para mim, o primeiro instrumento é a voz, o melhor é o corpo. O resto é consequência”, afirma.Naná Vasconcelos iniciou a carreira com 12 anos, incentivado pelo pai, também músico. Para poder tocar na noite, conseguiu autorização do juizado de menores. “Aporrinhava tanto o meu pai que ele teve de me levar para os bares e cabarés. Naquela época, não havia criança na noite, por isso tive autorização especial”, recorda. Em 1967, o pernambucano se mudou para o Rio de Janeiro e lá conheceu um grande parceiro: Milton Nascimento. Naná se lembra muito bem do dia em que se encontrou pela primeira vez com Bituca, durante uma festa na casa do compositor. “Assim que o vi, falei: ‘Vim do Recife para tocar com você’. Ele me olhou com aquela cara meio desconfiada. No fim da festa, alguém pediu para o Milton mostrar um pouco do que começaria a gravar. Era uma sexta-feira e, na segunda, ele iria para o estúdio fazer o primeiro disco”, conta. Bituca pegou o violão e começou a cantar Sentinela. Naná não se fez de rogado. Foi até a cozinha, pegou algumas caçarolas e passou a acompanhar o anfitrião. “Ele me olhou de um jeito meio surpreso e perguntou: ‘O que você vai fazer segunda-feira?’ Pelo visto gostou, né?”, relembra Naná, entre gargalhadas.


Encontro


No dia seguinte, o pernambucano se instalou de mala e cuia na casa de Milton Nascimento. A dupla passou a compor e a criar ritmos. “O pessoal do Rio só pensava em bossa nova. Ficaram intrigados com Milton: de onde vem isso? E ficamos durante um tempo juntos. Só depois surgiu o Som Imaginário e o pessoal da banda dele”, acrescenta. A convivência fez com que Naná viesse parar em Belo Horizonte, especialmente no Bairro de Santa Tereza. Passou um tempo na casa dos Borges, onde criava sons nas panelas de dona Maricota, a matriarca. No livro Os sonhos não envelhecem, o compositor Márcio Borges resume a experiência mineira de Naná: “Em sua temporada de cachaça e panelas na Rua Divinópolis e adjacências, ele chamou a atenção de Santa Tereza inteira perambulando pela redondeza com os pés descalços, camisa florida, barba extravagante e cabelo arrepiado. Sem falar na sua fama de polirritmista”.Naná se lembra com carinho dessa fase. “Era muito gostosa aquela época. Santa Tereza me marcou porque a família Borges era muito forte, todo mundo gente boa. O resto do pessoal do Clube da Esquina também, como Fernando Brant, Toninho Horta, Nelson Ângelo. Essa turma fazia algo muito diferente, todo mundo era muito bom de serviço. Não parecia com nada produzido no Rio e em São Paulo. Linguagem própria, era uma África mineira, que mesclava mouros e canto gregoriano”, observa o artista, que morou alguns anos nos Estados Unidos e na França.


Música maior que o atlas


A mistura de gêneros musicais país afora encanta Naná. E ele observa que em praticamente todos os estilos, principalmente os que se sobressaem durante o carnaval, a percussão é uma forte marca. Seja o samba no Rio de Janeiro, o macaratu em Pernambuco, e até mesmo o axé na Bahia. “A África é a espinha dorsal da nossa cultura. O engraçado é que muita coisa veio de lá para cá, de pontos diferentes, e se encontrou pela primeira vez aqui. A capoeira mesmo veio de um lugar e o berimbau de outro. Aqui se juntaram. Nosso samba é exemplo disso. O Brasil agregou várias áfricas. Pegamos o que os africanos nos deram e abrasileiramos de certa forma”, pontua.Naná, que há 11 anos é o responsável pela abertura do carnaval do Recife, onde reúne diferentes nações de maracatu, diz que a luta foi árdua para colocar em voga esse ritmo com origens no candomblé. Segundo o músico, o frevo sempre foi mais bem visto, mesmo em Pernambuco, e o macaratu teve que quebrar muitas barreiras para ter a projeção de hoje. “O maracatu era tachado como algo de negro, de candomblé. Só era tocado na periferia e isso foi mudando. A classe média e a alta acabaram descobrindo o ritmo e o mais interessante é que vários dos artistas que eu trouxe para o carnaval incorporaram o maracatu em seus núcleos de trabalho”, lembra Naná Vasconcelos, que conquistou no fim do ano passado o Grammy Latino na categoria melhor álbum de música regional, com o seu mais recente trabalho, Sinfonia e batuques.Agora, o músico se prepara para lançar ainda este ano um disco sobre os quatro elementos. Os projetos sociomusicais também estão na agenda do pernambucano, como o ABC musical, criado em 1994, em que ele transmite ensinamento e sensibilidade musical a crianças do Brasil e de outros países. “É uma iniciativa itinerante, que depende de apoio das secretarias de cultura e introduz nos jovens as primeiras noções musicais por meio de repertório baseado no folclore e nas raízes brasileiras, ou seja, a criança aprende sobre o Brasil com a música. Não tem nada de novo nisso, porque Villa-Lobos fazia algo semelhante. Ele provou que a música era mais forte do que o atlas. Para mim, a música, das formas de arte, é a mais imediata porque ela mexe com as emoções. Faz você chorar, sorrir, dormir, meditar. A música é o momento”, filosofa o artista, que tem nada menos que 32 discos gravados.


Luz morena


Um dos destaques do mais recente CD de Naná Vasconcelos, Sinfonias e batuques, é a participação da filha do artista, Luz Morena (foto), de apenas 12 anos, em três faixas. A talentosa menina toca no piano as canções Mistério, Pedalando e Canção para Nanile, esta última em homenagem à mãe, Patrícia. Naná conta que Luz se encantou pelo instrumento quando viu um pianista amigo dele tocando, e desde então colocou na cabeça que queria um piano de presente. “Na época, não levei a sério; fingi que não era comigo. Mas ela insistiu tanto que comprei uma pianola. Para a minha surpresa, Luz Morena realmente se empenhou, chegou a ganhar um concurso de jovens pianistas em São Paulo e passou até a compor. Mas nunca na minha presença, porque ela só faz isso quando não estou, para ter mais privacidade e liberdade”, revela Naná.

domingo, 4 de março de 2012

"Homeland", que tem no elenco a carioca Morena Baccarin, estreia hoje na TV paga

LÚCIA VALENTIM RODRIGUESDE


SÃO PAULO


Depois de encarnar a líder de uma raça alienígena que não demonstrava sentimentos na série "V - Visitantes", a atriz carioca Morena Baccarin, 32, gostou de poder chorar e rir em cena novamente. Mais chorar, na verdade, pois isso é o que a sua personagem, Jessica Brody, mais faz em "Homeland", que estreia hoje à noite no canal FX. "O papel é difícil, mas foi bom ser uma humana de novo, poder conversar normalmente e ter emoções", conta a atriz à Folha em São Paulo. Vencedora de dois Globos de Ouro (drama e atriz, Claire Danes), "Homeland" mostra o retorno do sargento Nicholas Brody (Damian Lewis), marido de Jessica, aos EUA. Refém de terroristas no Iraque por oito anos, ele havia sido declarado morto. Por isso, Jessica seguiu em frente e se envolveu com o melhor amigo dele, também militar. "Adoro esse conflito dela: enterrou o homem que amava em seu coração, achou outro e agora tem de largar a nova paixão para dar uma chance ao marido, que voltou da guerra diferente. Mas não consegue fazer com que ele lhe conte o que sente." O triângulo amoroso se complica quando Nicholas se aproxima de Carrie (Claire Danes), uma agente da CIA que desconfia que ele tenha virado terrorista. Assistida por mais de 4 milhões de pessoas nos EUA, "Homeland" tem um fã ilustre: Barack Obama. "Meu marido brinca que o presidente já me viu nua [na série]. Vou pensar nisso quando o conhece", diverte-se Baccarin. Apesar do gracejo, a atriz sabe que o programa levanta perguntas difíceis para os EUA. "Os americanos precisam falar sobre os medos do terrorismo sem romantismo e sem ter medo da verdade." Em maio, começam as gravações do segundo ano da série, na Carolina do Norte. "Não há muito o que fazer lá, então cozinho bastante para o resto da equipe. Não param de falar da minha moqueca." Mais centrados na relação entre Nicholas e Carrie, os novos episódios vão se passar alguns anos depois do final da primeira temporada. Sem adiantar o enredo, Baccarin diz que Jessica vai enveredar por trilhas políticas, como faz o marido na primeira temporada. "Mas não dá para saber para que lado ele vai. Quer criar um ataque terrorista ou está sendo puxado de volta para a família?", indaga, enigmática.


NA TV


Homeland Estreia da série


QUANDO hoje, às 22h, no FX


CLASSIFICAÇÃO 14 anos

A mitologia das idéias - Helio Schwartsman

Ciência
A mitologia das idéias


O "brainstorming" vs. o poder dos introvertidos


RESUMO


Recentes descobertas na psicologia e na neurociência colocam por terra fórmulas pré-fabricadas sobre como surgem as boas ideias. Livros publicados nos EUA explicam por que o "brainstorming" não funciona e as pessoas trabalham melhor sozinhas, embora a razão humana evolua para o saber coletivo.


HÉLIO SCHWARTSMAN


COMO TEMOS BOAS IDEIAS? A questão não é trivial e já mobilizou de pensadores do porte de Platão, Descartes e David Hume a empresários preocupados em aumentar a produtividade de seus funcionários. Como não poderia deixar de ser, métodos ditos infalíveis para obtê-las enchem as estantes das seções de livros de autoajuda.A maioria dessas receitas está errada. E a razão é muito simples: o mundo é um lugar complexo demais para ser subsumido por meia dúzia de fórmulas pré-fabricadas. Para tornar as coisas um pouco mais complicadas, muitas vezes topamos com uma boa ideia sem conseguir identificá-la como tal. Recentes descobertas na psicologia e na neurociência, ainda que não permitam produzir um guia da criatividade passo a passo, pelo menos servem para descartar determinados mitos que insistem em se perpetuar."


BRAINSTORMING" O mais célebre deles é o do "brainstorming". Como conta o escritor Jonah Lehrer em recente artigo para a revista "The New Yorker", o conceito surgiu no livro "Your Creative Power" (Myers Press). Nesta obra de 1948, ainda em catálogo, o publicitário norte-americano Alex Osborn, sócio da mítica agência BBDO, prometia dobrar o poder criativo do leitor.O livro, que foi um inesperado "best-seller", trazia conselhos como "carregue sempre um caderninho, para não ser surpreendido pela inspiração". O ponto alto, contudo, estava no capítulo 33, intitulado "Como organizar um esquadrão para gerar ideias". Osborn dizia que o segredo do sucesso de sua agência eram as sessões de "brainstorming", nas quais uma dezena de publicitários se reunia por 90 minutos e saía com 87 novas ideias para uma "drugstore".A principal regra de um "brainstorming" era "não critique o companheiro". Para Osborn, "a criatividade é uma flor tão delicada", que precisa ser alimentada com o louvor e pode ser destruída por uma simples palavra de desencorajamento.A coisa pegou como uma praga. Osborn escreveu vários outros "best-sellers" e virou guru da literatura de negócios. Os pedagogos também adoraram e até hoje nossos filhos perdem precioso tempo na escola se dedicando a atividades de grupo onde o mantra é jamais criticar o coleguinha, mesmo que ele diga uma tremenda besteira.O principal problema com o "brainstorming" é que ele não funciona. Como mostra Lehrer, o conceito fracassou já em seu primeiro teste empírico, em 1958. Pesquisadores da Universidade Yale puseram dois grupos de 48 estudantes para propor soluções criativas para uma série de problemas. No primeiro, os voluntários atuariam segundo as instruções de Osborn; no segundo, cada aluno trabalharia sozinho. Estudantes que operaram individualmente apresentaram, em média, duas vezes mais propostas que os do "brainstorming". Mais ainda, um comitê de juízes considerou essas contribuições melhores e mais factíveis que as do primeiro grupo.


ARQUITETURA Outra noção popular e errada é a de que laboratórios e escritórios devem ter uma arquitetura que praticamente obrigue as pessoas a interagirem, favorecendo "insights" criativos. Essa moda derrubou muitas paredes, e grandes empresas se tornaram um imenso átrio, onde todos se encontravam o tempo inteiro. Estima-se que cerca de 70% dos escritórios dos EUA sigam esse padrão. Um dos maiores entusiastas do conceito de arquitetura de plano aberto era Steve Jobs, da Apple.Como mostra Susan Cain, no recente "Quiet: The Power of Introverts in a World that Can't Stop Talking" [Crown, 352 págs., R$ 26] , a relação entre interações sociais e boas ideias é mais sutil. Num estudo chamado "Coding War Games", Tom Demarco e Timothy Lister avaliaram a performance de 600 programadores de informática de mais de 90 companhias.A diferença entre os profissionais era impressionante: o desempenho do melhor superou o do pior em dez vezes. E, para tornar as coisas mais misteriosas, as causas suspeitas de sempre -como experiência, salário, tempo dedicado à tarefa- não explicavam o fenômeno.Demarco e Lister, entretanto, perceberam que os melhores programadores tendiam a agrupar-se nas mesmas firmas. Investigando essa pista, descobriram que o segredo era a privacidade: 62% dos que se saíram bem disseram que seu lugar de trabalho oferecia um ambiente reservado onde podiam se concentrar, contra apenas 19% dos que tiveram pior performance.


INTROVERTIDOS O objetivo de Cain, nesse interessante livro que pretende ser uma espécie de manifesto de libertação dos introvertidos, é demonstrar que as pessoas precisam respeitar seu temperamento. Especialmente para os tímidos, em geral super-representados nas carreiras científicas, o excesso de interações sociais é amedrontador. Eles se saem melhor em ambientes mais tranquilos, onde sua atenção não seja requisitada para desempenhar várias tarefas ao mesmo tempo.O problema, sustenta a autora, que largou a advocacia para dedicar-se ao estudo da introversão e à orientação para tímidos, é que o mundo -o Ocidente em especial- abraçou uma cultura da personalidade, cujos valores são ditados por um ideal de extroversão. Quem não consegue ou não gosta de falar em público e motivar as pessoas já sai perdendo pontos na carreira e na própria vida.Voltando à criatividade, antes de eliminar todas as reuniões de sua empresa, construir paredes por todos os lados e proibir os funcionários de trocar bom-dia, é preciso saber que o problema é mais complexo e nuançado.Embora as pessoas de um modo geral trabalhem melhor sozinhas (especialmente os introvertidos), a criação continua sendo um processo coletivo. Na verdade, cada vez mais coletivo. Ben Jones, da Northwestern University, passou os últimos 50 anos analisando quase 20 milhões de publicações acadêmicas e 2,1 milhões de patentes. Em mais de 95% dos campos e subcampos científicos, o trabalho de equipe vem crescendo. O mesmo ocorre com o tamanho das redes de colaboradores, que aumenta em média em 20% a cada década.Se até um ou dois séculos atrás a ciência podia gravitar em torno de gênios individuais como Einstein e Darwin, à medida que ela se torna mais complexa e especializada, avanços significativos dependem cada vez mais da interdisciplinaridade que, por seu turno, depende de redes cada vez maiores.A ideia de saber coletivo ganhou inesperado apoio no ano passado, com a publicação de um impactante artigo dos pesquisadores franceses Hugo Mercier e Dan Sperber, que virou do avesso alguns dos pressupostos da filosofia e da psicologia. Eles sustentam que a razão humana evoluiu -não para aumentar nosso conhecimento e nos aproximar da verdade, mas para nos fazer triunfar em debates. A teoria, dizem os autores, não só faz sentido evolutivo como resolve uma série de problemas que há muito desafiavam a psicologia: os chamados vieses cognitivos.


EXPERIMENTO Antes de prosseguir, peço licença para descrever uma experiência curiosa. O psicólogo Richard Wiseman, da Universidade de Hertfordshire, resolveu espalhar 240 carteiras pelas ruas de Edimburgo. Elas não continham dinheiro, apenas documentos de identidade, cartões de fidelidade, bilhetes de rifa e fotografias pessoais.A única variação eram as fotos. Algumas das carteiras não tinham foto nenhuma e outras traziam imagens que podiam ser de um casal de velhinhos, de uma família reunida, de um cachorrinho ou de um bebê. A meta do experimento era descobrir se a fotografia afetaria a taxa de devolução das carteiras. Num mundo perfeitamente racional, a imagem seria irrelevante. Devolve-se o objeto perdido porque é a coisa certa a fazer. O trabalho de colocá-lo numa caixa de correio não é tão grande assim, e é o que gostaríamos que os outros fizessem, caso nós é que tivéssemos perdido os documentos.É claro, porém, que as fotografias influíram nos resultados. Foram devolvidas apenas 15% das carteiras sem foto, pouco mais de 25% das que traziam a imagem dos velhinhos, 48% das da família, 53% das do filhotinho e 88% das do bebê.O experimento ilustra como o cérebro opera. Embora tenhamos nos acostumado a pensar que tomamos decisões pesando prós e contras de cada uma das alternativas possíveis e extraindo com base nisso uma conclusão, o que os estudos psicológicos e neurocientíficos mostram é que, na maioria das ocasiões, a parte inconsciente de nossa mente chega de imediato a uma conclusão, por meio de sentimentos, palpites ou intuições. Neste instante, são os vieses cognitivos que estão operando.Em seguida, a porção racional de nosso cérebro se põe a procurar e elaborar argumentos racionais (ou quase) para justificar essa conclusão. É muito mais uma conta de chegada do que um cálculo honesto.


SIGNIFICADO O neurocientista norte-americano Michael Gazzaniga trabalha bem essa questão. Ele identifica no hemisfério esquerdo estruturas que buscam dar sentido ao mundo. O pesquisador as chama de "intérprete do hemisfério esquerdo". É ele que busca desesperadamente um significado unificado a todas as nossas experiências, memórias e fragmentos de informação.Ele nos faz deixar de ver as evidências que não nos interessam e atribui enorme peso a tudo o que apoia a nossa tese. Quando a história não fecha, pior para a verossimilhança: o intérprete não hesita em criar desculpas esfarrapadas e explicações que beiram o delírio.Quem resume bem a situação é Robert Wright, em "Animal Moral" (Campus BB, 2005, esgotado): "O cérebro é como um bom advogado: dado um conjunto de interesses a defender, ele se põe a convencer o mundo de sua correção lógica e moral, independentemente de ter qualquer uma das duas. Como um advogado, o cérebro humano quer vitória, não verdade; e, como um advogado, ele é muitas vezes mais admirável por sua habilidade do que por sua virtude".Voltando ao trabalho de Mercier e Sperber, ele é bom porque consolida numa argumentação sólida explicações evolutivas para vários dos vieses, em especial o "viés de confirmação", pelo qual fechamos os olhos para as evidências que não corroboram nossas crenças e expectativas e sobrevalorizamos aquelas que apoiam nossas teses.Sob o modelo clássico, o viés de confirmação é uma falha de raciocínio mais ou menos inexplicável. Mas, se a razão evoluiu para nos fazer vencer em debates, então faz sentido que eu busque apenas provas em favor da minha teoria, e não contra ela.As implicações são fortes. A mais óbvia é que a razão só funciona bem como fenômeno social. Se pensarmos sozinhos, vamos muito provavelmente chafurdar cada vez mais em nossas próprias intuições e preconceitos. Mas, se a utilizarmos no contexto de discussões mais ou menos estruturadas, aumentam bastante as chances de, como grupo, nos darmos bem.Temos então um aparente paradoxo: as pessoas trabalham melhor sozinhas, mas a construção do conhecimento é um processo coletivo. O ruído se dissolve se reinterpretarmos o "sozinhas" como "com privacidade, mas em constante diálogo (de preferência virtual) com outros especialistas".


PATOLOGIAS É preciso, porém, muito cuidado. A linha que separa a sabedoria das multidões dos delírios coletivos é tudo menos nítida. Como mostra toda uma linha de pesquisas iniciada por Irving Janis, da Universidade Yale, nos anos 70, grupos incubam uma série de patologias do pensamento.A primeira delas é a polarização. Junte um punhado de gente com opiniões semelhantes, deixe-os conversando por um tempo e o grupo sairá com convicções mais parecidas e mais radicais. Provavelmente é assim que nascem facções como o Tea Party, que reúne ultraconservadores radicais nos EUA, e até mesmo organizações terroristas. O advento da internet e das redes sociais pode estar facilitando a formação desses bandos.A animosidade é outro elemento importante. Ponha um corintiano e um palmeirense para discutir futebol numa sala. Eles discordarão, mas provavelmente se tratarão com civilidade. Entretanto, se você colocar cem de cada lado, quase certamente produzirá xingamentos e até pontapés, quando não tragédias. Há, por fim, a conformidade. Grupos tendem a suprimir o dissenso. Mais do que isso, procuram censurar dúvidas que um dos membros possa nutrir e ignorar evidências que contrariem o consenso que se forma. É esse o segredo do sucesso das religiões.Nesse contexto, são especialmente divertidos os experimentos do psicólogo Solomon Asch. Ele submeteu 123 voluntários a um teste tão ridiculamente fácil que ninguém poderia errar: exibia para eles um cartão que trazia estampada uma linha com determinado comprimento. Em seguida, num segundo cartão, apareciam três linhas marcadas com letras de A a C, umas com medidas bem diferentes das outras. A missão era identificar a letra cuja linha era igual à do primeiro cartão. Em 35 tentativas, apenas um infeliz deu a resposta errada.Mas (sempre há um "mas" em ciência), quando o pesquisador pôs comparsas seus para dar propositalmente respostas erradas antes do voluntário, a taxa de acertos despencava de 97% para 25%. Resultados parecidos foram reproduzidos em no mundo inteiro.As incursões de Asch pelos perigos da conformidade inspiraram outros experimentos famosos, como os de Stanley Milgram (no qual, pressionadas por um pesquisador, as cobaias não hesitam em dar choques que acreditam ser quase fatais num ator) e de Phil Zimbardo (ele simulou uma prisão num porão da Universidade Stanford, e os voluntários que faziam o papel de guardas se tornaram tão violentos que a encenação teve de ser interrompida).


DÚVIDA O melhor remédio contra essas doenças do grupo é semear a dúvida, em especial se o questionamento surgir de um membro respeitado do próprio grupo. Como mostram Ori e Rom Brafman em "Sway: The Irresistible Pull of Irrational Behavior" [Broadway Books, 224 págs., R$ 19] , a existência de pessoas "do contra" ("dissenters", em inglês) são nossa melhor esperança.Embora possa produzir fricções de alto custo emocional para todas as partes envolvidas, a figura do "dissenter" costuma levar a maioria a reformular seus argumentos (ou projetos), de modo a responder a objeções percebidas como relevantes. Essa dinâmica fica particularmente clara em situações como a de tribunais colegiados, comissões legislativas e na própria ciência. É praticamente o inverso de um "brainstorming", onde a regra era não criticar.O "do contra" aqui, ainda que possa provocar brigas homéricas, é um elemento fundamental para melhorar a qualidade do trabalho. O diálogo, vale frisar, nem precisa ser ao vivo. É preciso criar mecanismos que questionem os consensos.Embora não exista receita para ter boas ideias, é possível melhorar seu desempenho se conseguir trabalhar num ambiente que lhe proporcione privacidade e o poupe de interrupções. Normalmente, é melhor estar sozinho, mas sem jamais se alijar dos debates travados em seu campo de atuação.Quando precisar juntar colaboradores, mais vale reunir grupos heterogêneos, com um número razoável de pessoas "do contra". Eles reduzem os riscos das patologias da conformidade. Em vez dos elogios, prefira as críticas. Apesar de desgastantes, são elas que vão ajudá-lo a melhorar suas ideias. E, mais importante, não acredite em fórmulas prontas.

Pós-canção - Ailton Magioli e Francisco Bosco‏





Música brasileira encontra caminhos para expressar a voz dos artistas da nova geração. Leitura política da realidade é mais diversa e plural

Ailton Magioli















Chico Buarque


Por mais que praticamente todos eles estejam vinculados à tradição da canção popular, não dá para negar: a desgastada sigla MPB passa por aguardada renovação, depois do longo reinado daqueles que contribuíram para a sua consolidação. Chico Buarque, Gal Costa, Milton Nascimento, Maria Bethânia, Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso e tantos outros continuam em cena, mas dividem o território com Criolo, Céu, Romulo Fróes, Tulipa Ruiz, Kristoff Silva, Marcelo Jeneci, Lucas Santtana, Karina Buhr, Makely Ka, Wado, Mariana Wisnik, Luiza, Curumim, Tiê, Edu Kneip, Coletivo Instituto, Thiago Amud, Cidadão Instigado, Graveola e O Lixo Polifônico, Flávio Renegado, Transmissor e muitos outros responsáveis pela reciclagem.














Gal Costa


“É o fim do ciclo da geração 1960, apesar de muitos deles continuarem compondo e cantando”, detecta o pesquisador e professor Frederico Coelho, da PUC Rio, cujo interesse pelo tema resultou na organização coletiva do livro MPB em discussão – Entrevistas (Editora UFMG). Para ele, o próprio Chico Buarque apontou a novidade, ao prever que a canção, tal qual a conhecíamos, não sobreviveria por muito tempo. “Eles não são mais a voz hegemônica da MPB”, acrescenta Frederico, lembrando que nomes como Céu, Lucas Santtana e o hermano Marcelo Camelo já são referência.

“A banda Los Hermanos toca tão profundo hoje quanto Chico tocava a um jovem fã na época dele”, compara Frederico, para quem mudaram tanto o público quanto as referências da canção. “Já não precisa partir da bossa nova, do bolero e dos ritmos nordestinos para fazer canção. Ela pode nascer do rap, do dub jamaicano, da eletrônica”, diz Frederico Coelho, admitindo que a principal característica da nova MPB é a mudança no formato da produção. “Se antes havia as grandes gravadoras e seus estúdios, cujo vínculo dependia da divulgação de apenas três mídias fixas (rádios, jornais e TVs), hoje há uma gama imensa de recursos tecnológicos à disposição dos músicos, sem necessidade de sair de casa, incluindo a internet e as comunidades virtuais.”

Para o pesquisador, provavelmente ninguém mais vai vender 100 mil cópias de discos – exceção feita às carreiras formatadas para trabalhar com a massa, como artistas de axé, religiosos e sertanejos. “Se anteriormente a opção era estourar ou se tornar alternativo, agora é diferente. Está tudo pulverizado”, constata. Ele salienta que a nova MPB vem sendo feita por artistas de uma faixa etária que varia de 25 a 45 anos. “Marcelo D2, por exemplo, é da nova MPB. Ele começou como rapper, passou a fazer rap com samba e hoje faz quase um samba mesmo”, exemplifica.

Na opinião de Frederico Coelho, se a geração dos anos 1960 também era vinculada a uma discussão sociológica da MPB, diante da trágica experiência da ditadura militar, hoje isto se fragmentou, com o formato possuindo uma relação mais antropológica com a MPB. “A canção se articula com a realidade social do país com pontos de vista mais diversos. Até os anos 1960, tínhamos a música urbana, a música folclórica e a música sofisticada, que era a bossa nova. Trabalhava-se sobre duas, três matrizes básicas. Hoje, um jovem pode compor a partir do tecnobrega, de uma guitarrada amazônica ou de um samba carioca. A base da relação musical é muito mais ampla”, compara. Frederico avalia que, atualmente, ninguém que estuda ou pesquisa música brasileira vai questionar se alguém fez uma canção em cima de base internacional.


A nova canção é nova?


Francisco Bosco*, especial para o EM



Desde os anos 1990 questiona-se o valor dos novos cancionistas brasileiros. Resumida ao mínimo, a historiografia é assim: até 1929 é o período de formação; de 1930 a 1957, consolidação; entre 1958 até o fim dos 1970, época de ouro modernizadora. A partir daí já pairam suspeitas. O rock errou? Há algo além de Chico Science nos anos 1990? Rap é canção? E finalmente: a geração atual é tão inventiva quanto foram as suas precedentes no "século da canção", como a chamou Luiz Tatit?

Essas suspeitas tiveram um momento crítico de formulação na já célebre entrevista de Chico Buarque em 2004, em que ele lançou a hipótese de um fim da canção. Uma resposta fecunda é a do cancionista Romulo Fróes, que há um tempo aprofunda e contraria a hipótese de Chico. Para Romulo, a novidade da canção contemporânea não está nas relações internas de seus elementos fundamentais (melodia, harmonia, ritmo e letra), como ocorreu desde o início, mas na sua sonoridade, com a exploração de novas possibilidades tecnológicas de timbres.

Isso vai ao encontro do aumento de importância, entre nós, da figura do produtor: Catatau, Kassin, Gui Amabis, como produtores, são tão importantes quanto Céu, Otto, Criolo, Karina Buhr, Lucas Santanna. A canção nova é mesmo nova? A própria pergunta encerra uma ideia velha de novidade. Tende-se a julgar a cultura com parâmetros antigos.

Não há hoje figuras centrais, como havia na era do rádio ou dos festivais. O impacto de artistas na cultura é bem menor. A indústria fonográfica quebrou. A cultura se descentralizou. Talvez não haja no momento o grande cancionista – mas isso ainda é possível? E está mesmo fazendo falta?


* Ensaísta, poeta e letrista, parceiro de João Bosco

Tecnologia deu mais liberdade Artistas contemporâneos não fazem questão de movimentos ou manifestos e buscam no clima de cooperação a saída para as consequências da crise da indústria fonográfica



Ailton Magioli





Para o compositor Romulo Fróes, um dos talentos da MPB contemporânea, é sempre saudável manter canais desimpedidos com a tradição


Discípulo do produtor brasiliense Tom Capone (1966-2004), o também produtor e guitarrista carioca Plínio Profeta, de 39 anos, lembra que o banquinho e o violão perderam espaço nos últimos tempos. “O imediatismo do momento já não permite que um artista passe anos lançando discos, sem vender, para consolidar uma carreira. Como as gravadoras perderam força, os independentes começaram a criar carreira independente. Artistas como Criolo, Tulipa Ruiz e Céu já surgiram com mentalidade independente”, constata Plínio, lembrando que a própria noção de qualidade na música mudou.

“Se antigamente as pessoas vinham da contracultura hippie, hoje é preciso ter noção de marketing para fazer música. A própria produção é quase um selo de composição”, aposta Plínio Profeta. O produtor lembra que o avanço tecnológico permitiu a gravação de discos em casa. “Já não precisamos de gravadoras e muito menos de seus estúdios”, comemora. Como ressalta o pesquisador Frederico Coelho, o senso de coletividade predomina no meio, ainda que artistas como Milton Nascimento, Chico Buarque e Caetano Veloso já explorassem tal característica em seu trabalho.

Longe de querer constituir um movimento ou algo do gênero – não há diretrizes e muito menos manifestos –, o que a nova geração da MPB busca é a aproximação. “Por necessidade”, justifica o paulistano Romulo Fróes, de 40 anos. “Eu, por exemplo, estou aí desde 2000, fazendo disco, tentando viver de música autoral, em pleno caos da indústria fonográfica brasileira”, acrescenta o cantor-compositor, que, paralelamente à carreira solo, integra o grupo Passo Torto, ao lado de Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral.

Para Romulo, o que caracteriza a nova turma de MPB é o desapego pela indústria, associado a um contato mais íntimo, além de um sistema de gravação e divulgação diretamente associado às novas tecnologias. “Pode parecer pouco, mas isto atuou na qualidade sonora dos nossos discos”, avalia ele, atribuindo aos últimos álbuns de Caetano Veloso (Zii e Zie, de 2009, e Cê, de 2007) e de Gal Costa (Recanto, não por acaso também produzido por Caetano) papel determinante para a mudança de cena na MPB contemporânea.

Assumidamente ligado à linhagem mais triste do samba, à la Nelson Cavaquinho, o cantor paulistano diz que a nova geração de artistas brasileiros mantém relação com a MPB e sua história, “sem medos, sem reservas e sem tributos”. “O que nos distingue é a liberdade, a diversidade e a falta de vergonha”, garante Romulo Fróes, sem se esquecer de associar tais características à adquirida experiência de gravação.

Como reforça o pesquisador e professor Frederico Coelho, em Caravana sereia bloom, que acaba de lançar, a também paulistana Céu exibe intimidade com o GarageBand, que a nova geração já considera como uma espécie de novo gravador, tamanha a facilidade que encontrou em manusear o software.


O palco não mente

Característica marcante da geração responsável pela solidificação da MPB, a relação com o palco – Maria Bethânia, por exemplo, protagonizou shows antológicos, além daquele que fez ao lado dos Doce Bárbaros Gal Costa, Caetano Veloso e Gilberto Gil – continua sendo objeto de preocupação da nova geração, como prova a paulistana Luzia.

Prestes a estrear o show de lançamento do primeiro disco, batizado com o próprio nome, a jovem cantora diz que a experiência de palco para ela é única e vital. “Gravo CD para me ouvirem em casa, mas para a realização artística, na minha concepção, o palco é imprescindível. É o momento em que me sinto inteira, exposta completamente, sem artifícios”, justifica Luzia, para quem, diante do atual excesso tecnológico, o palco virou muito mais “a hora da verdade”.

“O palco não mente”, justifica. A cantora admite que o espaço é vital para ela sentir a reverberação do público. Oriunda de família teatral, Luzia garante que o palco exige dela um ritual. “Eu gosto de me colocar à prova e o palco é o espaço para isto. É o que me alimenta como artista”, reconhece. “Acho também que cada vez mais vai ser exigido do artista uma performance diferente, que toque o público”, acrescenta. Fora o fato de detectar o que chama de “preocupação imagética”. “Música não é só som”, conclui Luzia, citando o grupo paulistano Cinco a Seco como exemplo de diálogo cênico entre música, TV e cinema.

Marcelo Gleiser - Os neutrinos não tão rápidos

A controvérsia sobre o possível erro dos cientistas do Cern nos ensina sobre como funciona a ciência Depois de muita euforia, especulação e intrigas contra Einstein, saiu o pré-veredito sobre os neutrinos supostamente mais rápidos do que a luz. Digo pré-veredito porque existem ainda alguns pontos a ser esclarecidos. Mas, ao que tudo indica, segundo declaração da última semana de cientistas do laboratório de física de partículas europeu Cern ligados ao experimento, a culpa do erro de cerca de 50 bilionésimos de segundo é um mau contato numa fibra ótica. O princípio base da teoria da relatividade de Einstein, de que nada pode viajar mais rápido do que a luz, sobreviveu.No experimento, neutrinos criados no Cern, na Suíça, viajam 730 km através da crosta terrestre até chocarem-se com os detectores do laboratório em Gran Sasso, na Itália. Os cientistas do experimento Opera, em Gran Sasso, identificaram dois possíveis efeitos que podem ter causado mudanças no tempo de viagem dos neutrinos. O primeiro, uma conexão defeituosa entre a fibra ótica que leva sinais entre o sistema GPS e o relógio-mestre do detector, pode ter diminuído o tempo de viagem dos neutrinos. Para complicar, o segundo efeito, um instrumento que opera dentro do detector e que deveria estar sincronizado com os sinais de GPS, pode aumentar o tempo de viagem.Como os dois efeitos agem contrariamente, os cientistas do Cern e da colaboração Opera estão estudando sua magnitude para então decidir qual dos dois domina a medida final. Porém, Lucia Votano, diretora do laboratório Gran Sasso, afirmou que "suspeita principalmente" da fibra ótica, o que confirmaria a validade da teoria de Einstein. Em maio, os dois laboratórios vão repetir o experimento usando pulsos de curta duração com uma precisão bem maior do que a atual. O caso poderá então ser fechado.Conforme escrevi aqui no dia 2 de outubro de 2011, "embora o time de cientistas tenha sido extremamente cauteloso na análise de possíveis erros sistemáticos, é muito provável que algo tenha-lhes escapado. Talvez no processo de produção dos neutrinos -o momento em que surgem, talvez na medida do tempo entre os vários sinais que registram os resultados de colisões nos computadores, talvez algum efeito geológico ainda desconhecido. Ou, claro, pode ser que os neutrinos tenham viajado mesmo algumas dezenas de bilionésimos de segundo mais rápido do que os fótons, as partículas da luz. Mas não apostaria nisso." Continuo não apostando. De todo modo, a controvérsia é extremamente importante e nos ensina muito sobre como funciona a ciência. Sabendo que seus resultados aparentemente contrariavam um dos fundamentos da ciência moderna, os cientistas dos dois laboratórios buscaram diligentemente por erros em suas medidas e equipamentos para tentar eliminá-los.Talvez tenham se precipitado ao declarar para o mundo o que tinham achado antes de confirmar que estavam certos. Porém, agiram com humildade ao confrontar uma questão de extrema complexidade, pedindo ajuda aos colegas espalhados pelo mundo. Não há dúvida de que alguns se aproveitarão da situação e tentarão atacar a credibilidade da ciência. Obviamente, esses indivíduos não entendem que errar e admitir o erro são passos essenciais na busca pela verdade.


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita". Facebook: goo.gl/93dHI

Carlos Heitor Cony - O DNA das palavras

RIO DE JANEIRO - A Justiça acolheu o pedido de um cidadão que deseja modificar um verbete do dicionário de Antônio Houaiss, publicado sob a responsabilidade do instituto criado pelo famoso filólogo. O verbete em causa é "cigano" e seus derivados, como ciganear, ciganice e outros. Como é praxe nos dicionários, há a relação de todos os significados de determinada palavra, inclusive aqueles que podem ser considerados ou que são realmente pejorativos.Dando seguimento à ação, a Justiça pediu o recolhimento do estoque existente do dicionário em questão e estabeleceu pesa- da quantia a ser paga ao querelante, devido à indenização moral a que teria direito. No passado, um intelectual de origem judaica também questionou o verbete "judiação", constante de muitos dicionários. Não me lembro no que deu a ação, mas a palavra continua constando do léxico, com o significado de maltrato a alguém. É a linguagem do povo, verdadeiro autor e usuário das palavras. O que se exige de um dicionário é que traga o maior número de significados para cada vocábulo, inclusive para aqueles que podem ser pejorativos ou insultuosos a determinados indivíduos, comunidades ou instituições.Qualquer palavra pode mudar de significado conforme as circunstâncias e o tom da pronúncia. É o caso de "cachorrada", altamente pejorativa, derivada de cachorro e cão. "Você é um cão" pode ser elogioso, no sentido de fidelidade, apego a um amigo. Mas pode ser pejorativo, com o sentido de canalha: "Você não passa de um cão". Há o caso de "barbeiragem" e "barbeiro", palavras relativas a um ofício antigo e digno, mas que a gíria adotou para designar, inicialmente, um mau motorista, e, depois, qualquer um que cometa uma ação errada.

Recrutando as cariocas - JOÃO UBALDO RIBEIRO

Deve ser obra do famoso peso da idade, porque a cada ano fica mais difícil enfrentar a descompressão, na volta de minha temporada na ilha. Aliás, não costuma ser bem uma descompressão, antes é o seu contrário. Sai-se do sossego da ilha para enfrentar todas as fontes de estresse geradas pela cidade grande e mergulhar onde as coisas estão acontecendo e os destinos nacionais são discutidos e traçados. É meio chato mesmo e faz um bem enorme à saúde a gente passar um bom tempo sem assistir a noticiários de televisão e ler jornais, é uma espécie de spa mental e emocional, uma boa faxina em tanta tralha acabrunhante que não cessam de nos enfiar no juízo.Mas este ano tem sido diferente, até porque voltei em cima do carnaval, que aqui no Rio está ficando parecido com o da Bahia de antigamente, com a óbvia exceção das escolas de samba. Carnaval de rua, foliões fantasiados, bandas de sopro, todo mundo pulando solto. Na Bahia, antigamente, era assim, o carnaval era livre. Hoje, pelo que ouço e leio, a organização e a condução das grandes empresas em que se tornaram os blocos de Salvador só faltam transformar pular carnaval em ordem-unida e contratar sargentos dos Fuzileiros Navais para enquadrar os foliões - tudo bem, são os tempos. Mas aqui no Rio, o carnaval vem se espalhando pela cidade cada vez mais e tenho a impressão de que o ano, diversamente do que se diz, ainda não vai começar agora. Aguardaremos o feriadão da Semana Santa. Não podemos aspirar a folgar como os deputados, mas também somos filhos de Deus.Está tudo tão devagar que, honestamente, as notícias mais quentes continuam a vir da ilha e receio que mais uma vez, no centro delas, avulta a figura ímpar de Zecamunista, de quem não esperava falar novamente tão cedo, mas existe o dever do jornalista para com a notícia e ele é notícia. Apesar de cercada de sigilo e precauções, sua visita ao Rio, ainda este mês, está confirmada. O projeto do lançamento nacional dos Bem-te-vis da Pátria aqui no Rio continua a ser desenvolvido e ele me revelou, num dos muitos telefonemas que me tem dado, que, a depender dos contatos a serem feitos, deverá iniciar de pronto a etapa do recrutamento e alistamento, em moldes semelhantes aos dos Voluntários da Pátria, também criados no Rio.- E você vai participar do alistamento?- Claro, eu vou coordenar a formação da ala principal, a ala feminina.- A ala principal é a feminina?- Evidente. Minha experiência política demonstra que se pode confiar muito mais na militância feminina que na masculina, a mulher é a base dos Bem-te-vis da Pátria. E eu vou coordenar esse setor não é por nada, é porque sempre tive muito jeito para lidar com as mulheres, elas gostam de mim, eu trato todas como boas camaradas. E a mulher carioca, então... Não há brasileiro que não almeje, ou almejado não haja, ou a almejar não venha, a graça do favor de uma mulher carioca! A mulher carioca é a quintessência sublime da sedução feminina, da beleza e do encanto, a mais-valia da natureza, a palavra de ordem do Universo! A mulher carioca...- Zeca, me desculpe, mas está me parecendo que suas intenções, com esses Bem-te-vis da Pátria, estão mais relacionadas com as cariocas que com o combate à corrupção.- Tem razão, mas é só a aparência, é que eu me entusiasmo, quando toco nesse assunto. Eu de fato tenho grande admiração pela mulher carioca, isso vem de pequeno, faz parte de minha formação, já deve estar em meu DNA. No meu tempo, a gente chamava mulher gostosa de peixão. Ninguém se lembra disso, mas eu me lembro. Eu pegava a revista O Cruzeiro e passava o dia inteiro vendo as fotos daqueles peixões em Copacabana, cada peixão de desmontar o esqueleto!- Eu lembro. Os peixões também se chamavam uvas. Ela é uma uva!- Uva! Isso mesmo! Aqueles peixões, aquelas uvas, as vedetes! Angelita Martinez! Ai! Anilza Leoni! Ai! Íris Bruzzi! Ai! Elvira Pagã! Aaai!- É, Zeca, parece que vai ser difícil você se concentrar muito nos Bem-te-vis da Pátria, nessa sua estada no Rio.- Não, você está enganado, é que eu me entusiasmo com facilidade, você me conhece, é meu coração de orador revolucionário. O assunto me empolga e aí eu faço logo um comício, mas claro que os Bem-te-vis da Pátria são minha absoluta prioridade. O bem-te-vi é um passarinho de valentia e dignidade, muito melhor que o tucano, um folgado que só tem bico e pose e faz cocô o tempo todo. Você vai ver a força de nosso movimento.- É, você ainda não me deu detalhes de nada, só sei que vai haver uma camisa com um bem-te-vi dizendo que está vendo os ladrões.- Isso é apenas um aspecto, eu tenho muito mais para contar. Mas, antes de mudar de assunto, eu queria lhe fazer uma pergunta: não dá para dizer no jornal que eu sou virgem de carioca? De repente cola e aí vai ver que desperta o espírito de pioneirismo de alguma leitora ou a sede de glória de outra, pode ser que tenha alguma tarada... Enfim, nada de mais, você bem que podia dizer isso no jornal, eu nunca lhe pedi nada.- Isso não, não fica bem, para isso é melhor a internet. Já os Bem-te-vis da Pátria, tudo bem, são um projeto cívico. Quer dizer que você estará examinando candidatas a alistar-se nos Bem-te-vis. Como é esse exame?- Ah, é complexo, são vários exames. Mas eu só aplico um.- Qual é ele?- O psicotoque. Quem inventou fui eu. Você acha que a carioca...

Meu camarim - LUIZ FERNANDO VERISSIMO

É pouco provável que me convidem para fazer algum megashow num futuro próximo, mas nunca se sabe. Por via das dúvidas, e para não ficar atrás das exigências feitas pelos artistas internacionais que nos visitam, enquanto o convite não vem preparei uma lista do que eu quero no meu camarim.
– Cento e dezessete toalhas de banho fofas, brancas, com meu monograma em dourado.– O mesmo número de toalhas de rosto, com monogramas simples.
– Cinquenta roupões felpudos.
– Cinquenta pares de chinelos na forma de coelhos, também felpudos.
– Uma banheira jacuzzi.
– Patinhos flutuantes para a banheira jacuzzi.
– Submarinos de brinquedo para a banheira jacuzzi.
– Um sortimento de pastéis, dividido igualmente entre de carne e de camarão. Queijo não.
– Uma bandeja de empadas do restaurante Caranguejo, de Copacabana.
– Um suprimento inesgotável de picolés de coco da Kibon.
– Doze garrafas de champanhe Taittinger numa temperatura não menor do que 8 ou maior do que 11 graus.
– Quatro garrafas do vinho Cheval Blanc, safra 2005.
– Um serviço continuo de caviar, blinis, “creme fraiche”, vodka gelada e limão. O limão pode ser nacional. O caviar, obviamente, não.
– Três tenistas russas. De saiote.
– Uma massagista sueca e uma tailandesa que trabalhem em conjunto. Uma a parte de cima, outra a parte de baixo.
– Uma orquestra de câmara.
– Visitas da Patricia Pillar, da Patrícia Poeta e de alguma outra Patrícia que me ocorrer na hora.
– Um padre franciscano, um pastor evangélico, um rabino e um monge budista, para o caso de eu precisar de orientação espiritual ou de quatro para o pôquer.
– Em Busca do Tempo Perdido, A Montanha Mágica e A Genealogia da Moral, de Nietzsche, não para ler mas para deixar espalhados pelo camarim e dar uma boa impressão, e disfarçar as revistas de quadrinhos.

– Por último: nenhum contato com o mundo exterior. Nem por rádio, nem por TV, sequer por janela. Não quero ser incomodado pela realidade nem na hora do show.Aí estão minhas exigências. Espero que tenham tomado nota.

Pela honra do mandatário - MARIO VARGAS LLOSA

O presidente do Equador, Rafael Correa, ganhou uma importante batalha legal contra a liberdade de imprensa em seu país, e deu mais um passo para transformar o seu governo em um regime autoritário. A Corte Nacional de Justiça, a máxima instância da magistratura, condenou o jornal El Universo, decano da imprensa equatoriana com mais de 90 anos de existência, por injúrias ao presidente, com uma sentença extremamente severa: US$ 40 milhões e 3 anos de cadeia para os principais responsáveis do diário, os irmãos Carlos, César e Nicolás Pérez. (Correa depois "perdoou" a multa e pediu a anulação da sentença.) O processo se iniciou há pouco menos de um ano, em razão de um artigo do jornalista Emilio Palacio, que, comentando a atuação de Correa numa confusa rebelião da polícia, em setembro de 2010, na qual acabou envolvido, afirmava: "O ditador deveria lembrar, por fim, e isto é muito importante, que com o indulto, no futuro, um novo presidente, talvez inimigo seu, poderia levá-lo perante um tribunal penal por ter ordenado que se disparasse e sem aviso prévio contra um hospital cheio de civis e gente inocente". Correa considerou a frase lesiva à sua honra.Comemorando a decisão do Tribunal, enquanto seus partidários queimavam na rua exemplares do diário incriminado, o chefe de Estado do Equador disse que, com a sentença, haviam sido alcançados três objetivos: "provar que El Universo mentiu e é possível julgar, não os palhaços, mas os donos do circo, além de mostrar que cidadãos podem reagir aos abusos da imprensa".Ele não disse se estava satisfeito por sua honra ter sido reparada, e por uma razão muito simples: porque agora, precisamente, essa honra - aliás do seu nome e do seu governo - está sendo desprestigiada internacionalmente por uma operação judicial que toda a imprensa livre do mundo, as organizações de jornalistas, dos direitos humanos e partidos e governos democráticos consideram um atropelo cínico e exorbitante da liberdade de expressão. Levando em conta que esse atropelo não é o primeiro nem será o último, essa operação traz com consequências trágicas para o seu país.Nem é preciso dizer que a sentença da Corte Nacional de Justiça do Equador coloca uma espada de Dâmocles sobre todos os meios de comunicação e os adversários do governo, advertindo-os de que qualquer crítica ao poder poderá acarretar represálias.A intimidação e a ameaça de instalar a autocensura no mundo da informação, obrigando jornalistas e formadores de opinião a se tornarem censores de si mesmos e a escrever olhando furtivamente ao seu redor, é um método que todos os ditadores modernos praticam.O exemplo mais conspícuo na América Latina, depois do caso óbvio de Cuba, é o do comandante Hugo Chávez, da Venezuela, seguido por sua aluna exemplar, a argentina Cristina Kirchner - mais hipócrita, mas mais efetiva do que o da anacrônica censura prévia ou o mero fechamento policial de meios de comunicação indomesticáveis.O desaparecimento de um jornalismo livre e sua substituição por uma mídia neutralizada e incapaz de exercer a crítica é o sonho, também, das pseudodemocracias demagógicas e devastadas pelo populismo.Na verdade, quando começou a se destacar, em abril de 2005, em plena crise constitucional, Correa, economista católico, com títulos pelas Universidade de Lovaina e de Illinois e uma brilhante carreira acadêmica, inspirou muitas esperanças. Aparentemente movido por sentimentos generosos e idealistas, acreditava-se que fortaleceria as instituições democráticas, a justiça social e a modernização do Equador.Foi exatamente o contrário. Intoxicado pelo poder e pela obsessão continuísta, peão dos delírios socialistas e bolivarianos do comandante Chávez, Correa, com suas políticas de curto prazo, irresponsabilidade fiscal e corrupção multiplicada, empobreceu e confundiu a sociedade equatoriana, irritando-a e exasperando-a. Por isso, sua impopularidade foi crescendo de maneira sistemática nos últimos tempos.Esse é o contexto que explica os golpes desesperados contra a liberdade de expressão nos últimos meses.Dito isso, ninguém pode negar que o jornalismo, tanto no Equador quanto no restante da América Latina, está longe de ser sempre um exemplo de probidade, moderação e objetividade. Evidentemente, às vezes sucumbe ao sensacionalismo, ao exagero, à injúria e ao libelo, e por outro lado, um sistema judicial probo e independente deveria amparar os cidadãos contra esses excessos. Mas a decapitação não é o remédio mais adequado contra a dor de cabeça.A sanção a El Universo pela Corte Nacional escandaliza, entre outras coisas, por sua desproporção com a suposta ofensa e o caráter exorbitante com que se destaca. É a melhor demonstração de que sua finalidade não é corrigir os erros de que tenha sido vítima uma pessoa. É um ato político, que pretende acabar de vez com todos os pilares da democracia.De todo modo, foi uma vitória de Pirro de Rafael Correa. O caso serviu para mostrar, por um lado, como são pouco confiáveis os tribunais equatorianos em matéria de justiça, mancomunados como estão com os que controlam o poder político, e, por outro, a coragem e a coerência dos donos e dos jornalistas do Universo e dos inúmeros colegas equatorianos que se solidarizaram com eles. Os desenfreados esforços do governo para dividi-los e quebrá-los foram inúteis. Todos se uniram à sua luta: empresários, jornalistas, funcionários e gráficos, defendendo com magnífica coerência sua posição independente. Por seu lado, Correa converte-se num vulto indefinido, meio esmaecido, entre o tumulto dos pequenos caudilhos e dos "politicastros" que fazem parte da pior tradição da América Latina.


TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

Caetano Veloso - Picnic

Ao ouvir a conversa que surgiu, durante o ensaio do show de Gal, sobre a nomeação de Marcelo Crivella para o Ministério da Pesca (e a história de que o senador evangélico teria respondido à pergunta de um repórter sobre seus conhecimentos a respeito do assunto com a frase "Não sei nem colocar uma isca no anzol"), o guitarrista Pedro Baby, ainda levantando o tronco e a cabeça do semicírculo de pedais que se dispõe à sua frente, comentou (ele viveu alguns anos nos Estados Unidos): "Puxa vida, Ministério da Pesca!, daqui a pouco vai ter o Ministério do Piquenique." O número de ministérios é enorme e só fez crescer na era Lula. Tem que agraciar muitos partidos e muitos grupos de pressão (dizem que Crivella entra para atrair eleitores evangélicos para o candidato do PT, portanto do Governo Federal, à prefeitura de São Paulo, já que Serra decidiu dizer mais uma vez que se se eleger não deixará o cargo para tentar de novo a presidência?). Quem pode acreditar em quem quer que esteja em qualquer dos lugares dessa dança? Um pique-nique contra a legalização do aborto e o reconhecimento do casamento gay. Piquenique ou picnic? Como é mesmo que o acordo nos aconselharia a grafar essa palavra inglesa (ou alemã?) há século consagrada pelo uso?
Esse acordo é uma maluquice. Quero dizer, é outra maluquice. É mais uma maluquice. O que foi mesmo que houve nos anos 1970? Não me lembro de ouvir a palavra "acordo" (que ainda se escrevia "acôrdo", para distinguir da primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo acordar). Mas o fato é que o CD "Nego", concebido por Carlos Rennó, ficou com esse título que remete mais ao samba-canção que primeiro fez furor na voz de Nelson Gonçalves e, depois, na de Maria Bethânia do que à palavra que poderia corresponder ao "nigger" americano, se este não fosse um xingamento. Até os anos 1970, escrevia-se "nêgo", quando se queria designar alguém de pele escura, ou dengar um amigo ou namorado querido, ou ser simpático com o vendedor da loja, ou simplesmente referir-se ao ser humano em geral. Aliás, nesta última acepção é que ouvi essa palavra pronunciada hoje, pelo mesmo Pedro, quando, ao reportar uma combinação que tinha feito com todos os membros de sua família, disse que "nego acatou logo". "Nego" é "geral", é "todo mundo" (que perdeu o "o", o artigo definido que tinha herdado da origem francesa da expressão, também depois dos anos 1960, acho, embora eu próprio quando escrevi um livro nos anos 1990 ainda teimasse em manter o artigo). Nego é a família de Pedro.
Também o livro "Um defeito de cor", cujas 925 páginas li sempre com algum interesse, ostenta um título à primeira vista estranho na capa: alguém decorou um defeito e o repete sem precisar consultar o teleprompter? Não, seu velho, "cor" é "côr". Faz décadas que alguém decidiu, neguinho decidiu, um grupo de pessoas decidiu (quem, afinal, foi a esse piquenique?) que seria mais fácil para os estudantes brasileiros e estrangeiros que os acentos diferenciais dançassem. Por falar nisso: por que Guimarães Rosa escreve "dansar" em ao menos uma das histórias (estórias) de "Sagarana" (ou será "Corpo de baile")? E "dôido" em todo o "Grande sertão"? "Dôido"? Nem nos anos 1950 eu aprendi isso. Diferençava-se "doido" (que já começa com um ditongo que automaticamente confere som fechado ao "o", além de assegurar a tonicidade da sílaba - que aliás independe disso, já que um dissílabo não acentuado e não terminando em "i", "u" ou ditongo é automaticamente paroxítono - fazendo duas vezes desnecessário o recurso ao acento circunflexo) de "doído", como até hoje se faz. Nada mais. Mistérios. Escrever é muito perigoso. Esse circunflexo de Rosa deve ter motivações esotéricas, numerológicas, ocultas. É um caso extremo e anômalo. Mas o de, por melhor exemplo, "fôra" até hoje me faz falta. Muitas vezes inicio a leitura de um parágrafo de romance e paro na palavra "fora", indeciso se seu "o" foi pensado para se pronunciar aberto (e, portanto, indicar que não é dentro) ou fechado (dando à palavra o sentido de mais-que-perfeito do verbo ir - ou ser!). De modo que sempre tenho de recomeçar a leitura depois que, lendo o resto da frase, me asseguro de tratar-se de uma ou outra pronúncia. Imagino que teria um problema se estivesse lendo o texto pela primeira vez e em voz alta para um grupo, num piquenique.
Mas será que a finalidade é de fato facilitar o uso da língua escrita? E é seguro que a ausência de acentos a torna mais fácil? A facilidade é uma virtude para uma língua? Ouço muitos malucos brasileiros dizerem que "o português é uma língua muito difícil". De onde vem essa ideia? Do Ministério da Pesca?
Sempre se dá o exemplo da facilidade gramatical do inglês. Acho inglês uma língua de outro planeta. Ela é polida ou desgastada pelo tempo, uso e convergência de vários povos numa ilha afortunada, como um seixo. Não tem essas redundâncias de o plural ter que se reafirmar em cada palavra da sentença, não tem propriamente conjugação verbal, não tem esse desperdício de masculino e feminino pra tudo. Mas ouvi aquele discurso contra o preconceito linguístico nos Estados Unidos no filme "12 homens e uma sentença". Em "Picnic" temos aqueles peitos incríveis de Kim Novak. Agora aqui é "para" em vez de "pára". Como posso parar? As maluquices proliferam ao redor, só tenho uma cabeça. Ou talvez só tenha quatro, como diz Mautner.