domingo, 10 de julho de 2011

Adeus, Lênin!: nostalgia, família e mentiras

Em 05 de março de 2004, publique esse artigo sobre o filme Adeus Lênin! no Jornal da Cidade (Aracaju)

Adeus, Lênin!: nostalgia, família e mentiras

As transformações político-econômicas pelas quais passaram os países do Leste Europeu nos anos 80 já renderam inúmeros filmes e algumas obras-primas, como o longa-metragem Underground (1995), do iuguslavo Emir Kusturica, Um Olhar a Cada dia (1995), do grego Theo Angelopoulos, e Antes da Chuva (1994), do macedônio Milcho Manchevski.

A falência das antigas utopias e o inconformismo com a nova ordem mundial vêm gerando filmes de temática política que fazem uma releitura crítica desse período conturbado da história recente. Esses filmes deixam para trás a autocomplacência piedosa das produções engajadas e enfrentam com altivez a dura realidade dos novos tempos.

As Invasões Bárbaras, de Denis Arcand, e Adeus Lênin! De Wolfgang Becker, são exemplares dessa nova safra de filmes que encaram os temas políticos com bom humor, ironia cortante e uma suave nostalgia.

Além do fato de terem sido produzidos em 2003 e de utilizarem o drama de seus personagens como forma de analisar questões políticas e sociais de seu tempo e seus países de origem, As Invasões Bárbaras (Canadá) e Adeus Lênin!(Alemanha) possuem uma outra interessante característica em comum: ambos giram em torno de filhos que, diante da doença dos pais, mostram-se capazes de tudo para criar um ambiente que minimize o sofrimento daqueles, mesmo que isto envolva mentiras e subornos.

A comédia dramática Adeus, Lênin! é, no entanto, a produção mais impactante e criativa dessa nova leva de filmes políticos, em que podemos ainda citar o espanhol Segunda Feira ao Sol, de Fernando León de Aranoa.

Quarto filme do diretor alemão Wolfgang Becker, Adeus, Lênin! é um dos grandes sucessos do cinema alemão que surpreende pelo fenomenal equilíbrio demonstrado entre o drama e a comédia, entre a reflexão política e a atenção mais particular ao lado familiar. Em termos gerais, a honestidade na história e nos personagens, o equilíbrio entre a dureza e a tristeza da história e a ternura dos personagens podem ajudar a explicar o sucesso do filme no Brasil e em vários outros países.

Desde que estreou, no Festival de Cinema de Berlin, em fevereiro de 2003, a produção arrematou o prêmio de melhor produção européia do festival, ganhou sete prêmios e já foi visto por mais de seis milhões de pessoas na Alemanha. Esse número de espectadores transforma o filme na produção mais vista na terra de Win Wenders.

Ao que parece, Becker atingiu um nervo sensível da sociedade alemã com seu filme, abordando a reunificação das duas Alemanhas via fim do regime comunista, em 1989, e a queda do muro de Berlim.

Escrito por Bernd Lichtenberg, Adeus, Lênin! tem início em 1978, quando Christiane Kerner (Katrin Sass), fervorosa defensora do regime comunista da República Democrática Alemã (RDA), é abandonada pelo marido, que atravessa a fronteira da RDA para morar com uma alemã ocidental. Abalada, tendo que criar seus dois filhos Alexander (Daniel Brühl) e Ariane (Maria Simon) sozinha, uma vez recuperada do trauma da separação, Christiane torna-se uma cidadã ativa e exemplar, transforma o país em substituto de seu marido, abraçando o idealismo político socialista como razão da sua existência.

Mas em outubro de 1989, ao ver seu filho Alex ser preso por participar de uma passeata pró-unificação e por reivindicar liberdade de cruzar a fronteira da Alemanha dividida, ela tem um enfarte e acaba entrando num coma que a faz dormir durante oito meses. Ao acordar, em junho de 1990, o muro de Berlim tinha caído, a Alemanha Oriental tinha acabado e Alexandrer entende que o coração de sua mãe não está preparado para assimilar tanta coisa em tão pouco tempo. Para salvar sua mãe debilitada, Alex transforma o apartamento da família num microcosmo do passado, um tipo de museu socialista, onde sua mãe é carinhosamente levada a crer que nada tinha mudado.

Adeus Lênin! é provavelmente a primeira produção européia que aborda com propriedade, e de forma aguda, esse momento importante para a Europa e para o mundo que foi o fim das repúblicas socialistas. Wolfgang Becker sabe olhar para esse mundo cheio de bolor, que era a Alemanha Oriental, sem o rancor habitual a esse tipo de produção. Também não amacia, ao exibir a realidade do país antes e depois da queda do muro. No filme é mostrada a repressão aos que não eram membros do partido, a precariedade dos bens de consumo, as flores de plástico, a violência da polícia, etc. Do outro lado está o capitalismo, com sua fantástica vitalidade, suas infinitas promessas, mas também com seus profundos desajustes sociais e seu consumismo.

Mais que tudo, o que Becker põe em questão é a possibilidade de sobrevivência de um mundo baseado na mentira. Da mentira, evoluímos para a ficção. E se constrói um mundo tão fictício como era a Alemanha Oriental. “Alex utiliza algo que o Estado usava o tempo todo, porque o próprio Estado era baseado em mentiras”, diz Becker sobre seu filme.

Adeus Lênin! veio reforçar uma tendência que já se nota, há algum tempo, na sociedade alemã: a nostalgia do Leste alemão. Mais odiada que amada pelos alemães enquanto existiu, a Alemanha Oriental significou ditadura e privações econômicas para os cidadãos do Leste e simbolizou a “ameaça comunista” para a maior parte dos alemães ocidentais. A chamada “Ostalgie” (um neologismo alemão criado a partir das palavras ´Ost` - leste – e `Nostalgie` - nostalgia) apresenta facetas curiosas. A primeira delas é o fato de que essa tendência se disseminou não apenas no antigo lado oriental da Alemanha, mas em parte até mesmo entre os alemães ocidentais que nunca viveram sob o regime comunista alemão e sempre rejeitavam antes tudo o que se relacionasse com a RDA. O sentimento de insatisfação tem feito voltar ao cotidiano da Alemanha atual marcas e produtos desaparecidos com a reunificação. É o caso do ressurgimento de fábricas de produtos da era comunista ( como cosméticos, produtos de banho, produtos de limpeza e alimentos), do lançamento de programas de TV com entrevistas com políticos e atletas pré-queda e a proliferação entre os jovens, de roupas com temática pró-RDA.

Orquestrando os momentos de riso e tristeza está a trilha sonora do francês Yann Tiersen, mesmo compositor das partituras do filme O Fabuloso Destino de Amèlie Poulain (2001), de Jean-Pierre Jeunet, arrancando lágrimas do espectador, principalmente na sequência em que a mãe de Alex vê a imensa meia-estátua de Lênin ser carregada por um helicóptero ( uma referência cinematográfica ao início do filme A doce vida (1960, de Federico Fellini).

Adeus Lênin ! além de ser um ótimo registro de uma época, consegue a proeza de extrair do espectador emoções escondidas no fundo do coração e comove, ao contar a história do amor de um filho pela mãe. O filme é uma das mais gratificantes experiências cinematográficas doa no de 2003.

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