quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Humor

MARTHA MEDEIROS - Britadeiras

O filme Precisamos Falar sobre Kevin não concorrerá ao Oscar, tampouco a excelente atriz Tilda Swinton, mas uma cena já entrou para a categoria das inesquecíveis – ao menos para mim.

Antes, informações: o filme é a adaptação do livro homônimo de Lionel Shriver. Quem o leu não esquece o soco no estômago. É sobre um garoto perverso que termina por promover uma chacina na escola. A história é narrada pela mãe, que conta sobre o susto que levou com o nascimento daquele bebê que ela não identificava como uma bênção dos céus, sobre sua enorme dificuldade em contornar conflitos e sua descoberta de que formar uma família feliz não é tão simples como dizem.

É a desconstrução do mito da competência materna. Orientações bem-intencionadas podem não adiantar, nosso amor pode não ser bem transmitido, nossas atitudes podem não servir de exemplo. Existe algo tão influente quanto tudo isso: nossa dor interna. Ela contamina, ela comunica, ela desgraçadamente dá o tom das relações. O livro, tanto quanto o filme, é violento pela brutalidade dos sentimentos que ficam trancafiados.

A cena que me pareceu a mais simbólica e angustiante do filme mostra essa mãe com o filho ainda bebê – uma criança que não parava de chorar um minuto sequer. Não é incomum pais entrarem num surto de estresse com choro de crianças.

Recentemente, um americano jogou o filho de uma lancha por ele não parar de chorar, assim como outros adultos já levaram suas crianças a óbito por total descontrole emocional. No filme, a mãe não chega a esse radicalismo, ainda que esteja sempre a um segundo de explodir.

Então. Ela passeia por uma rua movimentada da cidade com o bebê no carrinho. Ele chora. Vem chorando há dias. A mãe não dorme, não vive, apenas escuta o choro ininterrupto daquele bebê. Até que ela passa por trabalhadores que estão fazendo reparos em bueiros no meio da rua. Trabalho pesado, barulhento, infernal. Ela sai da calçada com o carrinho e chega bem perto do trabalhador que está perfurando o asfalto com uma britadeira. Bem perto mesmo.

Estaciona o carrinho ao lado da britadeira que faz um barulho torturante. Close em seu rosto: por um instante, ela tem o conforto de trocar o choro do filho por outro ruído que, aos seus ouvidos, soa como um solo de flauta. O breve enquadramento daquela mulher com o carrinho no meio da rua e o homem trabalhando com a britadeira a seu lado é um mix de desespero e poesia como raramente vi no cinema.

Quantas pessoas não desejariam quebrar uma perna se isso desviasse a atenção de uma dor de amor insuportável? Não é que a mãe de Kevin não aguentasse mais o barulho do choro: ela não aguentava mais o barulho da sua culpa por ser incapaz de cumprir o papel de mãe amorosa e abnegada daquele pequeno demônio de fraldas. O som da britadeira, ao menos, não tinha nada a ver com ela.

Humor - José Simão

E eu já disse que a Dilma bateu recorde de popularidade porque é o Ano do Dragão. E um assessor com um cigarrinho na mão: "Presidenta, tem fogo?". "Tenho." "Então cospe aqui."

Angelopoulos se dividiu entre a história e o existencialismo - AMIR LABAKI

Opinião
Angelopoulos se dividiu entre a história e o existencialismo

AMIR LABAKI
ARTICULISTA DA FOLHA


Theo Angelopoulos morreu como viveu: filmando.

Aos 76 anos, ele rodava um novo filme sobre a crise econômica que devasta sua Grécia natal quando foi atropelado por uma moto.

Parecia ensaiar um retorno a seu primeiro cinema, engajado e histórico, numa obra sempre comprometida em simultaneamente tomar o pulso de seu país e expressar sua complexa visão de mundo.
Não o encontrei quando de sua visita ao Brasil em 2009, para receber uma homenagem pela Mostra de Cinema de São Paulo, que já o celebrara anteriormente com uma retrospectiva.

Mas tive o privilégio de uma longa e exclusiva entrevista para esta Folha em seu quarto de hotel em Cannes em 1995, logo antes da cerimônia em que receberia o Prêmio Especial do Júri por "Um Olhar a Cada Dia".

Ele não ocultaria do público a decepção por ver-lhe escapar mais uma vez das mãos a Palma de Ouro, então atribuída a "Underground", de Emir Kusturica. Mas sua vez viria, três anos depois, com "A Eternidade e um Dia".

No encontro, Angelopoulos revelou combinar intensidade intelectual com ternura de modos, como que espelhando a elaborada construção de seu cinema, de longos planos-sequência, não raramente nos conduzindo por diferentes temporalidades, suaves movimentos de câmera, quadros compostos e apreço por símbolos. O estilo é o homem e vice-versa.

"Filmo para mim, para meus amigos e para adocicar o tempo que passa", confessou-me o diretor de "Paisagem na Neblina" (1988).

Em quase meio século de atividade, realizou pouco menos de uma dezena e meia de longas-metragens.
Eles se dividem, de maneira geral, em duas grandes fases: o período inicial, histórico, marcado sobretudo pela trilogia sobre a turbulenta Grécia dos anos 1930 aos 1970 ("Dias de 36", "Os Atores Ambulantes" e "Os Caçadores"); e o período existencialista, com belos capítulos autobiográficos ("Viagem a Cítara" e "Um Olhar a Cada Dia").

"O meu cinema é da memória, de certa forma", autodefiniu-se em Cannes. "Não acho que exista passado. Tudo é presente. Tudo volta e volta, queiramos ou não."

"A Eternidade e um Dia", a obra de sua consagração definitiva, surge como paradigmática. Eis novamente um artista em crise (um cineasta no filme anterior, agora um poeta) que flana pela Grécia contemporânea enquanto recorda sua vida e pranteia pelo estado da arte.

Foi também assim que Angelopoulos nos deixou.

Roberto Lobo - Os foguetes ainda são newtonianos

Ao contrário das afirmações sensacionalistas, Newton e Einstein não estavam errados; as novas descobertas da física só são observadas em escalas extremas


Se eu me apoiar em uma parede, eu vou pressioná-la, e ela vai reagir fazendo uma força igual e oposta à força que eu fazia sobre ela. É isso que me impede de cair. Trata-se da terceira lei de Newton, que aprendemos na escola.

Se confirmada a experiência de que os neutrinos podem viajar a uma velocidade superior à da luz, a terceira lei de Newton deixará de ser verdadeira? Deixará de ser válida qualquer outra lei conhecida e de uso cotidiano?

O que significam manchetes questionando se estamos passando por uma "revolução na ciência" ou se "Einstein estava errado"?

As profundas mudanças ocorridas na ciência no último século se referem a fenômenos que, em sua quase totalidade, só são observáveis em escalas microscópicas, a enormes distâncias ou a grandes velocidades. Eles não são observáveis sem equipamentos modernos muito especiais.

Os resultados da lei da gravidade, por exemplo, só se modificaram com as novas descobertas para distâncias astronômicas.

Um exemplo é a órbita de Mercúrio ao redor do Sol. Ela não é exatamente periódica, em razão da atração de outros astros (fenômeno que já era conhecido antes de Einstein), que faz com que o ponto de maior aproximação do planeta com o Sol se desloque a cada rotação.

No entanto, os cálculos da época não coincidiam com as medições, havendo uma diferença de 1% entre eles. Quando foi aplicada a relatividade geral de Einstein, tornou-se possível corrigir os cálculos anteriores em 25 milionésimos de grau por rotação (e uma volta tem 360 graus!), fazendo teoria e experiência coincidirem.

A relatividade restrita de Einstein também só modifica as leis de Newton para velocidades próximas à velocidade da luz.

Por exemplo: a estrela mais perto de nós, a Próxima da constelação do Centauro, está a cerca de quatro anos-luz, que é a distância que a luz percorre em quatro anos.

Um foguete que viajasse a uma velocidade de 10 mil quilômetros por hora (mais de dez vezes a velocidade de um Airbus) levaria 400 mil anos para chegar à estrela Próxima. Por isso, até nossos foguetes ainda são newtonianos!

O desenvolvimento da tecnologia permite medidas muito mais refinadas e tem trazido desafios à ciência, pois fenômenos que antes eram inobserváveis nem sempre estão de acordo com as previsões teóricas baseadas em experiências menos extremas. Novas teorias são necessárias para explicá-los.

No entanto, elas só alteram os resultados nesses limites, sendo esse, aliás, um dos critérios de consistência para essas novas teorias. Ou seja, aquém desses limites as novas teorias devem reproduzir os resultados das observações clássicas.

É por isso que tudo que Einstein provou continuará válido para situações em que a relatividade é necessária, seja qual for o resultado da experiência com os neutrinos.

Afirmações sensacionalistas sobre as novas descobertas não ajudam a sociedade a compreender a evolução da ciência. Essa evolução, ao contrário do que parece, é fortalecida quando surgem novas descobertas, pois elas ampliam os limites de compreensão da natureza.

Eliane Cantanhêde - Desmotivados e motivados

BRASÍLIA - Dilma não suporta mais o ministro Mário Negromonte, mas ele está encastelado nas Cidades e dali não sai nem arrastado. Prefere empurrar os assessores pela janela. Ontem caiu o seu chefe de gabinete, Cássio Peixoto, baiano como Negromonte e indicado pelo PP como ele.

Vão-se os assessores, fica a cadeira, mas o vexame de Negromonte e o constrangimento do Planalto aumentam a cada dia, com lances de ridículo. O mais novo foi a explicação do ministério para a demissão de Peixoto: ele estava "desmotivado". Quanto às reuniões esquisitas para discutir licitações previamente com uma (pelo menos) empresa? Nenhuma palavra.

Enquanto parte do PP tenta livrar-se de Negromonte e fatiar novamente o Ministério das Cidades, o PMDB luta bravamente para tentar salvar o "insalvável" diretor-geral do Dnocs (Departamento Nacional de Obras contra as Secas), Elias Fernandes Neto. O que menos importa aí é que a seca está castigando boa parte do país, especialmente no Sul e no Nordeste, e cobrando mais eficiência. O que conta é que o motivado Neto é amigo do peito do líder pemedebista na Câmara, Henrique Eduardo Alves, chefão do PMDB.

É curioso como esse confronto do Planalto com o PMDB lembra o da Europa com o Irã. Dilma aperta o cerco ao Dnocs (para dar uma satisfação à opinião pública), e a Europa impõe novo embargo ao petróleo iraniano (para evitar a bomba atômica).

Como reage o PMDB? Ameaça romper e retirar toda a sua gente do governo, inclusive da Petrobras. E o Irã? Desdenha das pressões e diz que quem perde com o embargo é a própria Europa, que fica sem petróleo.

Ninguém, porém, acredita que os pemedebistas vão mesmo sair da Petrobras, nem que quem perde mais com o isolamento do Irã é a Europa. O PMDB, como o Irã, está blefando.

A comparação para aí, porque tanto a história das Cidades quanto a do Dnocs são brasileiríssimas.

elianec@uol.com.br

A política brasileira vai ao entretenimento - EUGÊNIO BUCCI

No início, ainda no século 18, a imprensa criticava o poder. Aprendeu a influenciar e derrubar governos. Ao final do século 19 os magnatas da imprensa criaram pontes que os levaram pessoalmente ao poder. O americano William Randolph Hearst (1863-1951) foi um dos precursores. Dono de grandes diários espalhados pelos Estados Unidos, elegeu-se deputado. Na primeira década do século 20 tentou a prefeitura de Nova York e, depois, o governo do Estado de Nova York. Perdeu as duas disputas, mas abriu o caminho. Depois dele vieram outros, como o bilionário Michael Bloomberg, dono do canal de TV com o mesmo nome, que é o atual prefeito de Nova York.

Ao longo do século 20, como sabemos, os jornais cresceram e deixaram de ser apenas jornais. Misturaram-se ao rádio, ao cinema, à televisão, aos espetáculos em geral, e tudo isso se converteu na portentosa indústria do entretenimento, dentro da qual a imprensa é um reles departamento. Hoje essa indústria entra e sai dos gabinetes do Estado na hora que bem entende, do jeito que bem quer, a tal ponto que as fronteiras entre os dois mundos às vezes se esfumaçam. Veja-se a epopeia bufa de Silvio Berlusconi, o imperador da televisão comercial italiana, que governou o seu país como se os shows de TV e as salas de despacho fossem um palco só.

A imbricação entre política e entretenimento foi tão longe que até mesmo atores medíocres conseguiram ser levados a sério pelas urnas. Ronald Reagan foi um paradigma histórico na presidência dos Estados Unidos, enquanto Arnold Schwarzenegger se realizou no papel de governador da Califórnia. Palhaços pouco letrados viraram campeões de voto, como Tiririca. Foi nesse embalo globalizado que a nossa República, também ela, que um dia teria sido a "República dos Bacharéis", se foi tornando calmamente a "República dos Comunicadores". O político dos nossos dias aprendeu a ser star. O texto que ele recita é secundário, o conteúdo não pesa tanto: o texto, na política, está subordinado ao regime do estrelato.

Resumindo: se antes os donos dos jornais queriam uma ponte que os levasse aos palácios do poder, hoje os políticos é que querem atrair os holofotes do entretenimento, querem ser amados como animadores de auditório. Fazer política, na nossa era, é fazer parte da festa ininterrupta da famigerada "grande mídia".

Não que a coisa toda tenha piorado. Até que melhorou. Aquela "República dos Bacharéis", convenhamos, era tudo menos republicana. Hoje, pelo menos, podemos falar numa democracia menos elitista, menos encastelada, uma democracia um pouco mais "de massa", ainda que popularesca.

Mas há problemas, e como. Na longa remodelação da linguagem política, a ideologia deu lugar à eficiência publicitária e o ideólogo foi aposentado pelo "marqueteiro". Agora, a comunicação política não copia apenas os trejeitos típicos do entretenimento, ela copia também o seu vocabulário, deixa-se pautar pela indústria da diversão e olha para ela, a diversão industrializada, como quem olha para o próprio mundo real.

Três episódios recentes ilustram esse quadro.

O primeiro aconteceu em dezembro, quando a atriz Lília Cabral recebeu da revista IstoÉ o prêmio de Personalidade do Ano de Televisão. A presidente Dilma Rousseff, que também foi premiada na mesma noite, quis entregar pessoalmente o troféu à atriz. "É uma emoção muito grande receber o prêmio das mãos da presidente que é quem conhece melhor do que ninguém as Griseldas desse país", comoveu-se a atriz.

Em tempo: Griselda é a personagem que Lília Cabral interpreta na novela das 9 da Globo, Fina Estampa, escrita por Aguinaldo Silva. É a heroína da classe C por excelência, ou, melhor, a heroína de uma classe C idealizada: tem um forte senso moral, põe a família acima de tudo, batalha para crescer na vida e, evidentemente, ganha na loteria. Mais que a pessoa física da atriz, quem ganhou o prêmio foi a protagonista da novela. Foi também à personagem - e ao que ela simboliza - que Dilma Rousseff rendeu homenagens. Mais uma vez, a política reverenciou a ficção em troca de popularidade.

O segundo episódio veio da mesma novela Fina Estampa. Na trama, o ator Marcelo Serrado representa um mordomo afeminado, que por vezes se exalta, num tom soprano aspirado, com tiques e contratiques caricatos. O nome dele é Crô. Lá pelas tantas, o ator, não o personagem, resolveu dar qualquer declaração a respeito de beijo gay na televisão. Parece que ele falou contra o beijo gay, algo assim. Pois foi o que bastou para que o assunto explodisse na internet e mesmo nos artigos de opinião em grandes jornais, em debates acalorados. A ficção, de novo, liderou a agenda do espaço público.

O terceiro evento foi a entrada em cena da ministra Iriny Lopes (Políticas para as Mulheres). Na semana passada ela enviou um ofício ao Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro pedindo providências diante de uma suspeita de abuso sexual dentro do programa BBB, também da Globo. Pela primeira vez o poder público participou ativamente do maior reality show em exibição no Brasil. O circo pautou o ministério.

Há quem diga que é por oportunismo que os políticos reagem solícitos aos estímulos do espetáculo. Não é. Mais que oportunismo, cristalizou-se um deslocamento nos fundamentos mesmos do discurso político. A política não tem outra saída. Hoje, no que chamamos de Ocidente, os domínios da emoção popular não pertencem mais à religião, assim como já não pertencem ao fulgor das mobilizações de massa: elas foram monopolizadas pelas formas de representação típicas da indústria do entretenimento. A política, que precisa tocar a emoção do povo, teve, então, de virar entretenimento. Os sintomas aí estão. Todos eles. Os efeitos mais perversos é que ainda estão por vir.

Saudade do Ted Boy Marino - LUIS FERNANDO VERISSIMO

Alguma coisa aconteceu no coração do Brasil quando acabaram com as lutas de "catch". Elas eram um sucesso na TV e seus astros viajavam em caravanas pelo País, apresentando-se em ginásios e circos. As lutas não eram lutas, eram teatro. Não eram exatamente combinadas, mas seguiam um roteiro estabelecido e havia um acordo tácito de que ninguém sairia do ringue machucado, mesmo que saísse arremessado. O roteiro básico não variava: era os bons contra os maus, e os bons sempre ganhavam. Ou só perdiam quando o adversário traiçoeiro recorria a um golpe especialmente baixo, sob uivos de raiva da plateia. E a reação da plateia fazia parte do teatro. Havia uma suspensão voluntária de descrença, e todos torciam pelo Bem contra o Mal - ou pelo bonito contra o feio, o esbelto contra a barrigudo, o correto contra o falso - com um fervor que não excluía a consciência de que era tudo encenação.

Era fácil distinguir os bons e os maus. Os bons eram atletas como o Ted Boy Marino, caráter tão irretocável quanto os seus cabelos loiros, que lutava limpo. Os maus tinham nomes como Verdugo e Rasputin, e comportamento correspondente ao nome. Lembro de um Homem Montanha, que mais de uma vez derrubou o juiz junto com o adversário. E não havia um Tigre Paraguaio? Os bons geralmente começavam apanhando e, quando parecia que estavam liquidados e que o Mal triunfaria, vinha a eletrizante reação, durante a qual o inimigo pagava por todas as suas maldades. Humilhação e vingança, nada na história do teatro é tão antigo e tão eficaz. Nove entre dez novelas de televisão têm o mesmo enredo.

Não sei se ainda fazem espetáculos de "catch" pelo interior do País. Hoje na TV o que se vê é o "ultimate fighting", ou "mixed marital arts", dois lutadores simbolizando nada trocando socos e pontapés sem simulação, quando não se engalfinham no chão como um bicho de duas costas e oito patas em convulsão. Nessas lutas não vale, exatamente, tudo - parece que esgoelar o outro e xingar a mãe não pode. Mas é o "catch" despido da fantasia, com sangue de verdade. Não há mais mocinho e vilão, apenas duas máquinas de brigar, brigando. Nem Ted Boy Marino nem Homem Montanha, apenas a violência em estado puro. Sei não, acho que empobrecemos.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Comoção e polêmica na Grécia após acidente fatal de Théo Angélopoulos




A Grécia estava em choque nesta quarta-feira (25) após a trágica morte na terça (24) de seu grande cineasta Théo Angélopoulos, atropelado por um motociclista durante filmagens perto de Atenas, enquanto uma polêmica foi desencadeada sobre o atraso da ambulância para que fosse atendido.
O ministro da Cultura, Pavlos Geroulanos, saudou a obra de um "dos maiores criadores da Sétima Arte e embaixador da cultura grega", considerando que "em seu caso, o termo 'insubstituível' teria todo sentido".
O jornal Kathimérini destacou que Angélopoulos foi um diretor dono de um "novo humanismo", enquanto que o Ethnos lamentou a perda de um "poeta do cinema". O Ta Néa homenageou o diretor "que fez o cinema grego viajar ao fim do mundo".
As rádios e redes de televisão abriram seus programas com o anúncio de sua morte, ressaltando o caráter "trágico" da morte do cineasta, Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1998 por seu filme "A eternidade e um dia".
Adepto da lentidão e dos planos contemplativos, Théo Angélopoulos foi atropelado por um policial fora de serviço que circulava de moto em alta velocidade no subúrbio de Atenas, em plena rodagem de seu último filme, O outro mar, em tradução livre, dedicado à crise financeira e à falência de seu país e da Europa. O cineasta tinha 77 anos.
A imprensa alimentou também uma controvérsia sobre o atraso da ambulância para chegar ao local, de 35 a 40 minutos após o acidente, segundo diversos testemunhos.
Um representante sindical dos motoristas de ambulâncias, Ioannis Houssos, afirmou à rádio Flash que faltam motoristas e que a frota está em condições precárias. Ele afirmou que um primeiro veículo enviado por um hospital do centro da cidade teve problemas mecânicos, antes de ser substituído por outro. Mas como a ambulância pertencia a um hospital distante, uma terceira conseguiu chegar ao local antes.
A imprensa se manteve prudente em relação às responsabilidades de vítima e do motociclista na tragédia.
A Grécia registra a maior taxa de mortes nas estradas da Europa, algo que muitos atribuem à imprudência de pedestres e motoristas, à apatia da polícia frente às infrações, e ao mau estado de conservação das estradas.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Emoções eu vivi - Luis Fernando Veríssimo

De todas as histórias que estão vindo à tona depois do acidente com o Costa Concordia, a minha favorita é a da moça que estava dentro de uma caixa, presumo que participando de um número de mágica, quando se deu o choque com as pedras e o navio começou a adernar. Não sei se ela era ajudante do mágico ou se tinha sido convocada da plateia para entrar na caixa.
Na verdade, como não me lembro onde li a história e não ouvi mais nada a respeito, não posso garantir que não a esteja imaginando.
Mas pense no que teria passado pela cabeça da moça dentro da caixa. Era para ela desaparecer e, provavelmente, reaparecer dentro de outra caixa. E de repente sente que está sendo deslocada dentro daquele espaço apertado, que está realmente sendo transportada para outro espaço, talvez para outra dimensão, da qual pode nem voltar se a mágica não der certo.
E imagine o alívio dela quando consegue sair da caixa e ver que todo o mundo está deslizando, junto com pratos e copos. Ufa. De volta à normalidade, pensa ela, antes de também começar a deslizar.
Muita gente que não estava lá tem histórias para contar das suas experiências em navios, e está aproveitando o desastre para contá-las. Eu, modéstia à parte, tenho várias. Minha mãe não gostava de avião, o que significa que a família tem um longo passado marinheiro.
Estávamos no primeiro navio que saiu de Nova York para a America do Sul no fim da Segunda Guerra Mundial. Um pequeno cargueiro argentino que corcoveava sobre as ondas. A viagem levou um mês, no qual passei uma semana vomitando e três aproveitando a aventura.
Durante anos fomos fregueses dos navios da Moore McCormick na linha Rio-Nova York-Rio, e a melhor lembrança que guardo deles é das cinco refeições por dia, não contando o caldinho quente no meio da manhã e o lanche no fim da noite.
Cruzamos de Southampton para Nova York no United States, na época o maior do mundo. E — não podia deixar meus dezessete leitores sem esta informação fascinante — fiz aniversário três vezes em alto-mar. Não sei qual é o recorde mundial.
O que tudo isso tem a ver com o desastre do Costa Concordia? Absolutamente nada. As maiores emoções em todas estas viagens eram os ensaios para emergências, que serviam para as pessoas se fotografarem vestindo coletes salva-vidas. E os céus estrelados, os peixes-voadores e, claro, o caldinho quente no meio da manhã.

Nonita - UMBERTO ECO

Imaginação


PROSA, POESIA E TRADUÇÃO



Nonita UMBERTO ECO


tradução JOANA ANGÉLICA D'AVILA MELO


Nonita. Flor da minha adolescência, angústia das minhas noites. Poderei algum dia rever-te? Nonita. Nonita. Nonita. Três sílabas, como uma negação feita de doçura: No. Ni. Ta. Nonita, que eu possa recordar-te até que tua imagem seja treva e teu lugar, sepulcro.Chamo-me Umberto Umberto. Quando ocorreu o fato, eu sucumbia destemidamente ao triunfo da adolescência. No dizer de quem me conheceu, não no de quem me vê agora, leitor, emagrecido nesta cela, com os primeiros sinais de uma barba profética que me endurece as faces, no dizer de quem me conheceu então, eu era um efebo valente, com aquela sombra de melancolia que creio dever aos cromossomos meridionais de um ascendente calabrês. As jovenzinhas que conheci me cobiçavam com toda a violência de seus úteros em flor, fazendo de mim a telúrica angústia de suas noites. Das donzelas que conheci pouco recordo, porque era presa atroz de bem diferente paixão, e meus olhos mal afloravam as faces delas, douradas na contraluz por uma sedosa e transparente pelugem.Eu amava, amigo leitor, e com a loucura dos meus anos solertes, amava aquelas a quem chamarias, com alheado torpor, "as velhas". Do mais profundo emaranhado das minhas fibras imberbes, desejava aquelas criaturas já marcadas pelos rigores de uma idade implacável, dobradas pelo ritmo fatal dos 80 anos, minadas atrozmente pelo fantasma desejável da senescência.Para designar estas últimas, desconhecidas da maioria, esquecidas pela indiferença lúbrica dos habituais "usagers" de rijas friulanas de 25 anos, adotarei, leitor -oprimido também nisto pelas regurgitações de uma impetuosa sabedoria que me aterroriza todo gesto de inocência que por acaso eu tente-, um termo que espero seja exato: parquetas.O que dizer, vós que me julgais ("toi, hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!"), da matutina presa que se oferece no palude deste nosso mundo subterrâneo ao calidíssimo amador de parquetas! Vós que correis pelos jardins vespertinos à caça banal de jovenzinhas mal tumescentes, o que sabeis da caça silente, umbrátil, casquinante, que o amador de parquetas pode conduzir sobre os bancos dos velhos jardins, na sombra odorosa das basílicas, pelas trilhas saibrosas dos cemitérios suburbanos, à hora dominical na esquina dos asilos, às portas dos abrigos noturnos, nas fileiras salmodiantes das procissões do padroeiro, nas pescarias beneficentes, em uma amorosa, cerradíssima e, ai de mim, inexoravelmente casta emboscada, para espreitar de perto aqueles rostos escavados por vulcânicas rugas, aquelas olheiras aquosas de catarata, o vibrátil movimento dos lábios crestados, recolhidos no delicioso afundamento de uma boca desdentada, às vezes sulcados por um filete luzidio de êxtase salivar, aquelas mãos triunfantes de nódulos, nervosas, lúbrica e provocantemente tremulantes ao desfiarem um lentíssimo rosário!Poderei jamais participar-te, amigo leitor, o langor desesperado daquelas fugidias presas dos olhos, o frêmito espasmódico de certos contatos ligeiríssimos, um golpe de cotovelo na tropelia do bonde ("Desculpe, senhora, quer sentar-se?" Oh, satânico amigo, como ousavas recolher o úmido olhar de reconhecimento e o "Obrigada, meu bom jovem", tu que gostarias de encenar ali mesmo tua báquica comédia da posse?), o roçar de tua panturrilha contra um joelho, venerando, ao te esgueirares entre duas fileiras de assentos na solidão vespertina de um cinema de bairro, o apertar com ternura contida -esporádico momento do mais extremo contato!- o braço ossudo de uma anciã que eu ajudava a atravessar no semáforo com ar contrito de jovem explorador!As vicissitudes da minha irreverente idade me induziam a outros encontros. Já o disse, eu parecia bem fascinante, com minhas bochechas morenas e um rosto terno de mocinha oprimida por uma suave virilidade.Não ignorei o amor de adolescentes, mas o sofri, como um pedágio às razões da idade. Recordo um entardecer de maio, pouco antes do ocaso, quando no jardim de uma "villa" fidalga -era no Varesotto, não longe do lago avermelhado pelo sol que descambava- jazi à sombra de uma touceira com uma menina de 16 anos, implume, coberta de sardas, tomada por um ímpeto de amorosos sentidos verdadeiramente desalentador.E foi naquele instante, enquanto lhe concedia apaticamente o ambicionado caduceu da minha púbere taumaturgia, que vi, leitor, quase adivinhei, em uma janela do primeiro andar, a silhueta de uma decrépita nutriz dobrada curvamente em duas enquanto desenrolava ao longo da perna o amontoado informe de uma meia preta de algodão.A visão fulgurante daquele membro inchado, marcado por varizes, acariciado pelo movimento inábil das velhas mãos entretidas em desenovelar a peça de roupa, pareceu-me (olhos meus concupiscentes!) como um atroz e invejável símbolo fálico afagado por um gesto virginal: e foi nesse instante que, tomado por um êxtase robustecido pela distância, explodi estertorando numa efusão de biológicos consensos, que a donzela (irrefletida fedelha, quanto te odiei!) recolheu gemebunda, como um tributo aos próprios fascínios ainda verdes.Terás compreendido algum dia, meu néscio instrumento de diferida paixão, que desfrutaste do alimento de uma mesa alheia, ou a obtusa vaidade dos teus anos incompletos apresentou-me a ti como um fogoso, inesquecível, pecaminoso cúmplice?Tendo partido com a família no dia seguinte, uma semana depois me enviaste um cartão assinado como "tua velha amiga". Intuíste a verdade, revelando-me tua perspicácia no uso acurado daquele adjetivo, ou apenas cometeste a giriesca bravata de uma secundarista em guerra com as filológicas boas maneiras epistolares?Desde então, como fitei trêmulo toda janela, na esperança de ver aparecer ali a "silhouette" desenfaixada de uma octogenária no banho! Em quantos serões, semiescondido por uma árvore, consumei meus solitários deboches, com o olhar voltado para a sombra, perfilada atrás de uma cortina, de uma anciã suavissimamente concentrada em um repasto ruminante! E a decepção horrenda, súbita e fulminante ("tiens donc, le salaud!"), da figura que se subtrai à mentira das sombras chinesas e se revela ao peitoril como aquilo que é, uma desnuda bailarina de seios túrgidos e ancas ambarinas de potranca andaluza! Assim, durante meses e anos corri insaciado à caça iludida de adoráveis parquetas, voltado para uma procura que, eu sei, extraía sua indestrutível origem do momento em que eu nasci, e uma velha e desdentada parteira -infrutífera busca do meu pai, que àquela hora da noite não conseguiu encontrar nenhuma outra além daquela, um pé à beira da sepultura!- me subtraiu ao viscoso cativeiro do ventre materno e me mostrou à luz da vida seu rosto imortal de "jeune parque".Não procuro justificações para vós que me ledes ("à la guerre comme à la guerre"), mas quero ao menos explicar-vos quão fatal foi a combinação de eventos que me levou àquela vitória.A festa à qual eu havia sido convidado era uma deprimente petting party de jovens manequins e universitárias impúberes. A flexuosa luxúria daquelas jovenzinhas excitadas, o negligente oferecimento de seus seios por uma blusa desabotoada no ímpeto de uma figura de dança me repugnavam.Eu já pensava em deixar correndo aquele lugar de banal comércio de virilhas ainda intactas, quando um som agudíssimo, quase estrídulo (e porventura poderei exprimir a frequência vertiginosa, a rouca degradação das cordas vocais já exauridas, "l'allure suprême de ce cri centenaire?"), um trêmulo lamento de fêmea velhíssima mergulhou a reunião no silêncio.E, na moldura da porta, eu a vi, o rosto da longínqua parca do choque pré-natal, marcado pelo entusiasmo escorrido da cabeleira encanecidamente lasciva, o corpo engelhado que marcava com ângulos agudos o tecido do vestidinho preto e liso, as pernas já débeis dobradas inexoravelmente em arco, a linha frágil do fêmur vulnerável desenhada sob o pudor antigo da saia veneranda.A insípida jovenzinha que nos recebia ostentou um gesto de enfadada cortesia. Ergueu os olhos para o céu e disse: "É minha nonna, minha avó"...


SOBRE O TEXTO Trecho de "Nonita", que integra os "Diários Mínimos", coletâneas de paródias e pastiches intelectuais que ganham nova edição pela Record em maio. Leia o texto completo, com informações do autor sobre em que condições os manuscritos fictícios de "Nonita" teriam sido localizados, em folha.com.br/ilustrissima.

Marcelo Gleiser - Por que duvidam da evolução?

Será que é tão ofensivo ter um ancestral em comum com outros primatas, como os chimpanzés? Ao menos nos EUA, a evidência é indiscutível. Em uma pesquisa do grupo Gallup na véspera do aniversário de 200 anos do nascimento de Charles Darwin, no dia 12 de fevereiro de 2009, apenas 39% dos americanos responderam que "acreditam na teoria da evolução".Não há dados semelhantes no Brasil, mas imagino que os números sejam semelhantes ou piores. A mesma pesquisa relaciona o resultado com o nível educacional dos respondentes. Apenas 21% das pessoas com ensino médio completo ou menos acreditam na evolução. O número sobe para 53% nos graduados e 74% em quem tem pós-graduação.Outra variável investigada foi a relação do resultado com frequência à igreja. Dos que acreditam em evolução, 24% vão a igreja semanalmente, 30% ao menos uma vez por mês e 55% nunca vão. Quanto mais crente, maior a desconfiança em relação à teoria de Darwin.Por outro lado, a evidência em favor da evolução também é indiscutível. Ela está no registro fóssil, datado usando a emissão de partículas de núcleos atômicos radioativos. Rochas de erupções vulcânicas (ígneas) enterradas perto de um fóssil contêm material radioativo. O mais comum é o urânio-235, que decai em chumbo-207.Analisando a razão entre o urânio-235 e o chumbo-207 numa amostra de rocha ígnea e sabendo a frequência com que o urânio emite partículas (em 704 milhões de anos, a quantidade de urânio numa amostra cai pela metade), cientistas obtêm uma medida bastante precisa da idade do fóssil. Por exemplo, os dinossauros desapareceram há 65 milhões de anos.A evidência em favor da evolução aparece também na resistência que bactérias podem desenvolver contra antibióticos. Quanto mais se usam antibióticos, maior a chance de que mutações gerem bactérias resistentes. Esse tipo de adaptação por pressão seletiva pode ser investigado no laboratório, sujeitando populações de bactérias a certas drogas e monitorando modificações no seu código genético.Posto isso, pergunto-me por que a evolução causa tanto problema para tanta gente. Será que é tão ofensivo assim termos tido um ancestral em comum com outros primatas, como os chimpanzés?A nossa descendência é ainda muito mais dramática: se formos mais para o passado, todos os animais que existem descenderam de um único ancestral, o Último Ancestral Universal Comum (na sigla Luca, em inglês), que provavelmente era um ser unicelular.Essa desconfiança do conhecimento científico é muito estranha, dada a nossa dependência dele no século 21. (De onde vêm os antibióticos e iPhones?) O problema parece estar ligado ao Deus-dos-Vãos, a noção de que quanto mais aprendemos sobre o mundo, menos Deus é necessário. Os que interpretam a Bíblia literalmente veem nisso uma perda de rumo. Se Deus não criou Adão e Eva e se não nos tornamos mortais após a "queda do Paraíso", como lidar com a morte?Uma teologia que insiste em contrapor a fé ao conhecimento científico só leva a um maior obscurantismo. Mesmo que não acredite em Deus, imagino que existam outras formas de encontrar Deus ou outros caminhos em busca de uma espiritualidade maior na vida.MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita". Facebook: http://goo.gl/93dHI

LUIS FERNANDO VERISSIMO - Marilena Chauí

Ela era bonita, mas também tinha curiosidade intelectual – Oi. – Oi. – Desculpe. É que nós vimos você sentada aqui sozinha... – Estou esperando meu namorado. – Eu posso falar com você até ele chegar? – Falar? – É. Só conversar. Não é paquera, juro. – Bom... – Eu estou naquela mesa ali, com aquela turma. Nós estávamos tentando decidir se você é modelo ou atriz. Metade aposta que você é modelo, metade aposta que você é atriz. – Não sou nem uma coisa nem outra. – É só bonita. – Só bonita, não. Eu trabalho. Num escritório de advocacia. – Ah, é advogada? – Não. Faço trabalho administrativo. – Veja você. Quando a gente vê uma mulher extremamente bonita, como é o seu caso, logo conclui que ela deve viver de explorar sua beleza. Que se não fizer isso está desperdiçando sua beleza. Ou sonegando sua beleza do público. O que não deixa de ser uma forma de preconceito. A mulher pode ser bonita sem fins lucrativos. Pode ser bonita de graça. – Você, como apostou? – Hein? – Você: apostou que eu era atriz ou modelo? – Pois você não vai acreditar. Fui o único que destoei dos dois lados. Disse: aquela ali é uma intelectual. – Não sou não. – Certo. Não digo uma escritora, uma pesquisadora, uma estudante de antropologia social... Mas há algo de... de... espiritual na sua beleza. Pensei: ela pode não abrir um livro... – Gosto de livro de vampiro. – Pois então. Ela pode só ler livro de vampiro e ao mesmo tempo ter uma mente superior. Notei isso de longe. Vim aqui com a missão de descobrir se você é modelo ou atriz e vi que eu é que tinha razão. – Você ganhou a aposta. – É... Não vou precisar pagar o chope... Se eles acreditarem em mim, claro. – Como, se eles acreditarem? – Podem não acreditar. Achar que eu estou inventando para ganhar a aposta. Que você não tem nada de espiritual. E nenhuma curiosidade intelectual. – Como eu posso ajudar? – Vamos fazer o seguinte. Hoje, às 10h, tem uma entrevista com a Marilena Chauí na TV Cultura. Eu posso, lá da outra mesa, lembrar você da entrevista e você faz um sinal de oquei. Oquei? – Combinado. Ele volta para a mesa da turma e diz: – Está no papo. – O quê?! – Dez horas no apartamento dela. – Você está brincando... – Eu não apostei que conseguia? E para ela, na outra mesa: – Dez horas! Não esquece! – E ela faz um sinal de oquei.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Charge - Nani



Eternamente moderna - Ana Clara Brant‏


Nara Leão faria 70 anos hoje. Cantora, que descobriu e revelou muitos artistas, ganha homenagem em site criado pela filha e deve ter musical remontado em breve Ana Clara BrantO ano era 1966. O Brasil vivia uma ditadura militar e vários artistas começaram a desafiar o sistema vigente. A então musa da Bossa Nova, Nara Leão, foi uma das vozes que se levantaram contra os militares e acabou sendo retaliada pelo corajoso ato. Em sua defesa, ganhou estes versos do poeta Carlos Drummond de Andrade: “Meu honrado marechal dirigente da nação, venho fazer-lhe um apelo: não prenda Nara Leão (...) A menina disse coisas de causar estremeção? Pois a voz de uma garota abala a Revolução? Narinha quis separar o civil do capitão? (…) Será que ela tem na fala, mais do que charme, canhão? Ou pensam que, pelo nome, em vez de Nara, é leão?”A atitude da artista mostra que o jeito de menina frágil e delicada era só aparência. A cantora capixaba abre hoje o clube dos artistas que em 2012 completam 70 anos de vida. Praticamente nenhum evento, tributo ou lançamento marcam as comemorações, e para não deixar a data ficar em branco, a filha mais velha da artista, Isabel Diegues, acaba de criar um site (www.naraleao.com.br) em homenagem à mãe. “ Em 19 de janeiro de 2012, minha mãe faria 70 anos. E esse é o meu presente: compartilhar sua obra para que todos possam se deliciar, ouvir e pesquisar à vontade”, declarou Isabel em sua página no Facebook.O endereço na internet traz uma cronologia da vida e da carreira de Nara, galeria de fotos, vídeos e áudios. As caixas com as coletâneas de seus discos lançadas em 2002 e 2005 são raridades nas lojas e um dos presentes que ela deve ganhar em breve é a reestreia do musical Nara, que volta em março aos palcos em São Paulo. Uma das grandes homenagens que a cantora ganhou ocorreu há cinco anos. O estilista mineiro Ronaldo Fraga criou uma coleção inspirada em Nara Leão e encantou a São Paulo Fashion Week. “É um desfile que até hoje as pessoas comentam. Foi realmente lindo e emocionante. Cresci escutando essa MPB de ouro da qual Nara fazia parte. Na época, teve até quem me questionasse a escolha do tema. O que mais me chamava a atenção nela era como criador e criatura eram a mesma coisa. Ética e estética se misturavam. O meu grande estímulo foi que Nara tinha uma cara da moda e do nosso tempo, ela experimentou e criou estilos. Tinha uma personalidade admirável”, declara Fraga.O estilista acrescenta que hoje pode parecer normal a trajetória da cantora, mas ela ousou e conseguiu passear por vários estilos como ninguém. “Muito do que as cantoras contemporâneas fazem, Nara já tinha feito. Ela começou na bossa nova, depois gravou Roberto Carlos, músicas nordestinas. Levou o morro carioca para dentro da casa dela. Fora a sua generosidade. Ela descobriu e revelou muita gente. Nara Leão é eternamente moderna”, destaca.O desfile, que teve performance ao vivo de Fernanda Takai, acabou rendendo frutos. A vocalista do Pato Fu revisitou o repertório de Nara Leão em seu primeiro disco solo, Onde brilhem os olhos seus, lançado em 2007. Entre as canções gravadas estão Debaixo dos caracóis dos seus cabelos (Roberto e Erasmo Carlos), Diz que fui por aí (Zé Keti/Hortênsio Rocha) e Lindonéia (Caetano Veloso/Gilberto Gil). O projeto teve grande repercussão entre o público e a crítica.MemóriaEla se tornou a musa da bossa novaNascida em Vitória, Nara Lofego Leão era a segunda filha do casamento entre dr. Jairo Leão, advogado, e Altina Lofego Leão, professora. Sua irmã mais velha é a jornalista Danuza Leão. Desde menina, ela se interessou pela música, e, aos 12 anos, ganhou do pai o seu primeiro violão e passou a fazer aulas com o músico Patrício Teixeira, no Rio de Janeiro, para onde se mudou quando tinha apenas 1 ano de vida. A bossa nova nasceu em reuniões no apartamento dos pais da cantora, em Copacabana. Foi durante esses encontros que ela conheceu seu primeiro namorado, o compositor Ronaldo Bôscoli. Além de musa desse movimento musical, Nara ficou conhecida como a intérprete de A banda. Mas foi também a responsável por trazer ao centro da MPB compositores como Cartola, Zé Keti e Nelson Cavaquinho, e lançar canções de nomes como o próprio Chico Buarque, Baden Powell, Carlos Lyra e Edu Lobo.Nara foi casada com o cineasta Cacá Diegues, com quem teve dois filhos: Isabel e Francisco. A cantora morreu no dia 7 de junho de 1989, aos 47 anos, vítima de um câncer cerebral.

Havel, cebolas e cenouras - DEMÉTRIO MAGNOLI

Fez ontem um mês que morreu Vaclav Havel. No dia seguinte ao enterro, 80 mil manifestantes reunidos em Moscou interromperam por um minuto o protesto contra Vladimir Putin para homenageá-lo em silêncio. Eles perceberam que o mundo ficou mais pobre sem Havel. O intelectual, dramaturgo e dissidente checo ensinou, ao longo de uma vida, que o contrário do comunismo não é o capitalismo, mas a verdade.Havel não era um dramaturgo excepcional, nem um ensaísta genial. Contra o cenário fulgurante da vida literária, artística e filosófica da Europa Central, suas peças e seus textos parecem, com apenas uma exceção notável, experimentos secundários. "A obra mais importante de Havel é sua própria vida", disse o romancista Milan Kundera. E, no entanto, ele fez mais diferença que qualquer outro.A dissidência comunista nasceu junto com a consolidação do poder bolchevique na Rússia. Antes de Hannah Arendt iluminar os paralelos entre o comunismo e o nazismo (Origens do Totalitarismo, 1951), figuras como Victor Serge (É meia-noite no século, 1939), Arthur Koestler (O Zero e o Infinito, 1940) e George Orwell (A Revolução dos Bichos, 1945) cortaram o corpo apodrecido do sistema soviético com o bisturi da literatura e escancararam a natureza do totalitarismo. Havel inspirou-se nesses predecessores para formular o seu diagnóstico: o mal manifestava-se como linguagem - e, justamente por isso, contaminava a sociedade inteira.O Poder dos Sem-Poder, de 1978, é o grande voo ensaístico de Havel. Escrito logo após um encontro furtivo com o dissidente polonês Adam Michnik, o texto desvendou o segredo do poder comunista tardio. O terror stalinista, com seu cortejo indescritível de opressão e brutalidade, era coisa do passado. No lugar dele se instalara um sistema "pós-totalitário", expressão que não pretendia conotar a superação do totalitarismo, mas uma acomodação essencial das engrenagens de controle da sociedade. O fundamento do sistema residia na mentira ritualizada.Por que o administrador da quitanda pendura na vitrine, junto com as cebolas e as cenouras, um cartaz com os dizeres "trabalhadores do mundo, uni-vos!"?, indagou Havel. Ele não estava "genuinamente entusiasmado com a ideia da unidade dos trabalhadores do mundo". O cartaz fora "enviado da sede da empresa ao verdureiro, junto com as cebolas e cenouras". O homem expunha-o porque "agia assim há anos", "todos fazem o mesmo" e "tais coisas devem ser feitas para que tudo corra bem na vida". O pós-totalitarismo comunista operava com base no hábito, na imitação, no medo e num interesse pessoal mesquinho. A doutrina que anunciara a libertação de toda a humanidade se conservava no poder pelo estímulo organizado das inclinações humanas à subserviência, à hipocrisia e à covardia. O poder comunista pereceria quando as pessoas sem poder simplesmente se recusassem a desempenhar os papéis deploráveis que lhes haviam sido designados.Na superfície, não parece existir nenhum traço comum entre Havel e o polonês Leszek Kolakowski. O checo nunca foi comunista; o polonês ingressou no partido na juventude, destacando-se como brilhante promessa. Por motivos políticos, as portas da universidade fecharam-se ao checo; pelas mesmas razões, abriram-se de par em par ao polonês, que cursou filosofia e, em 1950, ganhou uma viagem à "pátria do socialismo". A visita teve consequências inesperadas, pois aquela fresta para a "desolação material e espiritual" da URSS quebrou sua fidelidade ideológica, convertendo-o em dissidente. Mesmo nessa condição, porém, um abismo o separava de Havel: o polonês entregou-se à crítica da filosofia marxista da História, transitando numa esfera teórica distante dos interesses intelectuais do checo.Entretanto, um fio profundo une Kolakowski a Havel. De volta à Polônia, Kolakowski publicou um ensaio devastador que contestava o núcleo do pensamento marxista. A História não é previsível, escreveu, delineando um raciocínio que o conduziria à conclusão de que o stalinismo não representava uma aberração do comunismo, mas a sua plena realização. O dogma da previsibilidade da História é a fonte da noção de que os destinos da sociedade devem ser depositados no partido. Tal noção, por sua vez, esculpe a linguagem política da mentira, privando a sociedade de valores genuínos e esvaziando a vida pública de qualquer sentido cívico.A Revolução de Veludo, de 1989, transferiu um relutante Havel dos bastidores do Teatro Lanterna Mágica para o Castelo de Praga. No cargo quase simbólico de presidente da Checoslováquia, ele convidou Frank Zappa para tocar no concerto "Adeus ao Exército Soviético", última performance pública do músico. Também evitou que a separação entre a República Checa e a Eslováquia degenerasse nos horrores do conflito étnico. Há três anos, como ato político derradeiro, Havel inspirou a Declaração de Praga, que classifica o comunismo, ao lado do nazismo, como causa dos mais terríveis crimes do século 20. O documento solicita que o 23 de agosto, data da assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop, seja transformado em dia de memória das vítimas dos dois totalitarismos paralelos.Dias atrás, a blogueira cubana Yoani Sánchez divulgou um apelo em vídeo à presidente Dilma Rousseff. Yoani foi convidada para a estreia do documentário Conexão Cuba-Honduras, do cineasta Dado Galvão, na Bahia, em fevereiro, mas o governo cubano continua a negar-lhe uma autorização de viagem. Ela não pode viajar porque, como ensinou Havel, escolheu "viver na verdade", recusando-se a seguir o roteiro escrito pelo pós-totalitarismo. Todos nós podemos erguer um brinde em memória do dissidente checo. Dilma tem a oportunidade de homenageá-lo com um gesto especial: intercedendo em favor de Yoani. Nossa presidente fará uso desse privilégio ou preferirá celebrar uma mentira emoldurada por cebolas e cenouras?

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Hélio Schwartsman - Estupro no ar

SÃO PAULO - Se houve, de fato, estupro no "BBB 12", eu não sei. O que sei é que está em curso uma pequena revolução cultural, que redefine o conceito de liberdade sexual e vem exigindo mudanças na legislação.

No caso brasileiro, elas vieram em 2009, quando todo o capítulo do Código Penal que trata dos chamados atos libidinosos foi reescrito. Expressões anacrônicas como "mulher honesta" e "virgem" desapareceram sem deixar saudades. Homens e mulheres foram igualados em termos de direitos e responsabilidades, e a noção-chave de "manifestação da vontade" fez sua tardia estreia nas leis que regulamentam o sexo.

Tais mudanças eram mais do que necessárias, mas seria um erro acreditar que agora já está tudo resolvido. A julgar pelos precedentes em outros países, a introdução da ideia de consentimento como precondição para a relação sexual -que está apenas esboçada na legislação brasileira, mas já é a regra em vários Estados norte-americanos-, nos coloca diante de outro tipo de dificuldade.

Com efeito, quando o estupro era definido apenas em termos de violência física (a mulher que não reagisse à agressão não podia nem mesmo reclamar a posição de vítima) era relativamente fácil encontrar hematomas e fissuras que confirmassem a história. Depois que o critério passa a ser o consentimento, escancararam-se as portas para a indefinição.

Em que condições a aquiescência pode ser presumida? Como proceder quando surge uma guerra de versões? A própria semântica deixa de ser território seguro, pois há situações em que um "não" significa "sim" e outras em que o "sim" deve ser interpretado como um "não".

A barafunda é tamanha que já há juristas norte-americanos que defendem que cada relação sexual seja precedida de negociações contratuais que explicitem os respectivos consentimentos e os limites da brincadeira. Embora prudente, tal prática sacrificaria algo do romantismo.
helio@uol.com.br

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Dilma vai às compras - LUIS FERNANDO VERISSIMO

Dilma deu um tapa na mesa.

– Não é possível. Até o iogurte está ruim!

Não era a primeira vez que a presidente explodia assim, no café da manhã. Ou era um mamão papaia passado. Ou era um croissant farelento. Ou a manteiga rançosa. Agora, o iogurte. Como era possível? Até o iogurte estragado!

– Joguem no lixo – ordenou Dilma.

E perguntou:

– Quem é o responsável pelo meu café da manhã?

Chamaram o responsável pelo café da manhã.

– Olhe aqui, meu amigo – disse Dilma. – Eu já aguentei demais. Durante um ano, aguentei abacaxi fora de época. Pão duro. Ovo sem gosto. Bacon gordo. Aguentei tudo, sempre imaginando que no dia seguinte iria melhorar. Mas não melhorou.

E hoje chegou ao cúmulo. O iogurte estava estragado. Iogurte já é leite estragado, se estragar mais fica intragável. É o estragado do estragado. E hoje conseguiram me dar até iogurte estragado.

– É que, é que...

– É que o quê? Fale, homem!

– É que não sou eu que faço as compras, dona Dilma.

– Quem é, então?

– É um grupo.

– Um grupo?!

Era um grupo. Ou, como eles preferiam se chamar, uma aliança. Todas as manhãs, várias pessoas embarcavam em carros oficiais no Planalto e iam às compras. Cada uma levava a sua lista de compras. E cada uma tinha seu fornecedor favorito. O caso do mamão papaia era típico.

Não compravam o mamão papaia mais bonito e melhor. Não interessava a qualidade do mamão papaia, interessava que o dono da fruteira era do mesmo partido, além de primo, de um membro do grupo – que não aceitava outro mamão papaia na mesa da presidente a não ser o do seu primo. E assim acontecia com o croissant, com o pão e a manteiga, com os ovos, com o bacon...

– E o iogurte? Por que o iogurte ficou ruim de repente?

A explicação era que o iogurte mudara, por assim dizer, de patrocinador. Passara a ser importado de uma cidadezinha no interior de Minas, onde o afilhado de um dos membros da aliança era candidato à prefeitura e precisava de apoio. A viagem do interior de Minas a Brasília era longa, o iogurte não vinha bem acondicionado, era natural que estragasse...

Dilma deu outro tapa na mesa. Aquilo tinha que acabar.

– Vou eu mesmo fazer as compras!

– Mandou desfazer a tal aliança e no outro dia foi vista num supermercado enchendo o carrinho com produtos para o seu café da manhã, escolhidos com muito cuidado. Demorou-se no exame do mamão papaia, cheirando-o e apalpando-o até ficar satisfeita de que era o que queria.

Comentou com quem a acompanhava que aquilo lhe dera uma ideia para a escolha – pessoal, sem ouvir palpite de ninguém – dos seus novos ministros, quando fizesse a reforma.

– Você vai cheirá-los e apalpá-los até ficar satisfeita?

– Metaforicamente, sim.

Caetano Veloso - Gente

Quem entende de música no mundo sabe que ela (Elis) é uma das maiores que já houve


Ouvi Elis pela primeira vez vendo-a na televisão. Foi em Salvador — e nós, os baianos que chegaram ao eixão na esteira da estreia de Bethânia no Opinião, já tínhamos um esboço de visão da música popular numa perspectiva brasileira. Tive reação semelhante à que muitos tiveram: finalmente uma cantora moderna, em pleno domínio de seus recursos aparecia na cena profissional — e já embalad para alcançar massas de ouvintes. Era indubitavelmente um largo passo dado. Éramos todos, Elis e nós, esforços de criação dentro do universo exigente que foi o imediato pós-bossa nova.

Sempre conto que, na minha imaginação, Bethânia, Gal, Gil e eu faríamos algo marcante. Dos quatro, Gal e eu éramos os mais radicalmente joãogilbertianos. E eu talvez mais do que Gal. Bethânia tinha um temperamento e um talento que a levavam para além das marcas estilísticas do supercool de João. Gil, por ser o que mais era capaz de apreender os acordes e as levadas de violão do mestre, sentia-se livre para cruzar a fronteira. Gal desejava entrar cada vez mais fundo no mundo desdramatizado da bossa pura. Eu, que me julgava um observador útil, capaz apenas de contribuir com acompanhamento crítico e conversas teóricas (o que não me impedia de fazer umas musiquinhas), tinha João como paradigma e, por isso, interessava-me pelo desvelamento do ser da canção como forma. Assim, o canto e violão dele se opunham, dentro de mim, ao samba-jazz dos grupos instrumentais (ou voco-instrumentais) que se desenvolveram no Beco das Garrafas. Elis, cantando na TV, num videotape dos que chegavam de avião às províncias (ainda não havia televisão em rede), era a realização brilhante do estilo que me parecia oposto ao de João.

Mas a evidência de competência, talento e desenvoltura era mais forte do que meus esquemas críticos. O fato bruto de que alguém estivesse dominando divisões complicadas das frases rítmicas e exibindo com espontânea segurança o entendimento de cada notacantada (o modo como ela instintivamente cuidava daafinação) era em si mesmo um acontecimento na cena brasileira, um acontecimento que me obrigava a pôr tudo em novo patamar. Bem, tudo o que eu imaginava par meus três amigos era algo que tivesse esse poder — mas por outras vias, a partir de outros elementos, sempre nascidos da atenção a João. Assim, vi uma tensão natural entre nosso projeto e o acontecimento Elis. Tive quase um sentimento de ciúme. Sobretudo me senti com maiores responsabilidades e excitadopor desafios mais altos.

Nada disso nunca se desmentiu. Depois de Elis, teríamos que fazer algo mais radical. Bethânia esteve sempre fora da questão, já que ela tinha um estilo assombrosamente desenvolvido e totalmente independente da estética da bossa nova. Mas ela mal tinha se decidido pela música: havia sonhado em ser atriz, escrevia e fazia joias de metal. Sua voz e sua intensidade pessoal é que a puxaram para o canto, através do interesse despertado em quem a ouvia. O modo extrovertido, o tom expressionista, que contrastava com a sobriedade da bossa nova, tudo isso ela tinha em comum com Elis. Mas eram figuras opostas. Pôr as duas em comparação, dentro da cabeça, era como contrapor Sarah Vaughan a Edith Piaf. Mas o que acontecia era que, com Elis, eu era levado a pensar assim, em termos mundiais, considerando figuras nascentes de nossa canção com divas do grande mundo.

Bem, o ambiente de criação de música popular no Brasil estava se diversificando. Era a época de Edu — e Nara tinha aberto o leque do repertório, saindo das salas sofisticadas e indo ao morro e ao sertão. Mas, fosse Edu, Nara ou nós, todos parecíamos treinados em ambientes de teatro, cineclubes e diretórios acadêmicos. Elis era uma menina que gostava de Ângela Maria e se tornara um fenômeno infantojuvenil em Porto Alegre. A evidência de seu talento chamou a atenção de produtores que sonharam em fazer dela uma nova versão de Celly Campello, o que resultou em quatro LPs que, depois do estouro de “Arrastão”, foram banidos de sua discografia oficial — não tão diferente assim do que aconteceu com o 78 RPM de João, gravado no início dos anos 50. Seja como for, Elis vinha do mundo da música comercial, enquanto Nara , Edu e nós vínhamos dos ambientes intelectualizados.

O Beco das Garrafas e Armando Pittigliani compuseram a Elis genial que, logo formatada por Solano Ribeiro, veio a ser aquela espantos a explosão de musicianship que eu vi na TV.

Todos os encontros e desencontros que tive com Elis tiveram esse histórico como pano de fundo. Rogério, seu irmão, me deu de presente os quatro LPs pré-“Arrastão”, numa época em que eu, deslumbrado pelo prazer que dava assistir aos shows dessa cantora que nunca estava fora de sintonia com a música, via mais de uma vez seus espetáculos. Desde que voltei de Londres (coincidindo, em parte, com o período em que ela mostrou sua versão do cool), eu via Elis cantar exclusivamente para me sentir bem. Ela influenciou gerações de cantores, lançou multidões de autores, briguei com a “Veja” por causa do modo com essa revista publicou a notícia da sua morte (briga que nunca mais achei jeito de desfazer), e hoje a gente sabe que Björk a admira, que quem entende de música no mundo sabe que ela é uma das maiores que já houve. Ela me escreveu um bilhete pedindo perdão pelo que fez com “Gente”. E saúdo sua memória com um amor muito pessoal, particular e cheio de conteúdos peculiares.