quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

"Quanto maior o público, menor a complexidade do filme"

Juan Carlos Valdívia, diretor boliviano, fez um filme autoral e ganhou muitos prêmios estrangeiros. Ele gostaria que a América Latina passasse a exportar mais suas histórias, e não tanto suas misérias

LAURA LOPES
Mônica Wojciechowski
Valdívia ficou três anos em jejum de cinema. Retornou à ativa com um filme totalmente autoral

O diretor boliviano Juan Carlos Valdívia estava como que convalescente, doído e machucado depois de uma produção de sucesso, mas pela qual teve que fazer muitas concessões. American Visa, de 2005, trouxe a desilusão por que passa todo jovem diretor que almeja independência e autoridade sobre sua obra. "O filme acabou virando cinema de marketing, que está destruindo o cinema (de arte)", diz. Depois disso, ficou quase três anos num "inverno" cinematográfico, sem produzir ou assistir cinema. Eis que num momento de iluminação, resolveu que deveria escolher entre se renovar ou morrer como artista. "Decidi fazer um filme que só eu poderia fazer", afirma. Em seis meses, escreveu o roteiro, rodou e finalizou Zona Sur, longa que ganhou prêmio de melhor diretor e roteiro em Sundance na categoria cinema mundial, melhor ator, roteiro e prêmio especial do júri no festival de Guadalajara, e esteve na seleção oficial dos festivais de Tóquio, Miami, Berlim, Huelva (Venezuela) e Roma. Aqui no Brasil, o filme, finalizado há um ano e meio, foi exibido no Festival do Rio, em setembro, e no Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, em julho.

Zona Sur se passa praticamente só dentro da casa de uma família abastada em crise. A mãe, Carola, é divorciada e vive com seus três filhos, Andrés, Bernarda e Patricio, e dois empregados, Wilson e Marcelina – índios Aymara. Todas as cenas são de planos longos, ou seja, não há cortes dentro de uma mesma sequência: a câmera explora todos espaços do set, mostra os detalhes, foge dos personagens e volta a eles como se fosse um espectador curioso. Ela registra ao mesmo tempo em que explode na tela os símbolos da aristocracia de La Paz, que está em franca decadência.

Carola é uma mulher ocupada pelo trabalho, que aparentemente não dá muito retorno financeiro. Ela não paga o mordomo há seis meses – mesmo sendo ele a pessoa que realmente controla a casa – e acaba por se afundar em dívidas, até com o vendedor de produtos do campo. Durona e controladora, às vezes se revela amorosa e permissiva. Valdívia não toma partido do comportamento deste ou daquele personagem e, com esse afastamento, acha que sua crítica é ainda mais contundente.

"A câmera é circular para enfatizar que está sempre no mesmo lugar", afirma – assim como o círculo de percalços que recobre a família. Sua história não é uma "guilhotina" sobre a elite boliviana. Pelo contrário, como é aberta, incentiva a refletir. Além do uso incomum da câmera, Valdívia ousa no enredo. Nenhuma cena é, necessariamente, consequência de alguma anterior. Ele não trabalha com um enredo tradicional, mas expõe uma série de fatos que revelam o que se passa com a família. Os diálogos, e os silêncios, mostram o que aquelas pessoas estão pensando, seus medos, preconceitos, sentimentos e planos. "Quem disse que o cinema foi feito apenas para contar histórias?", ele questiona "A TV, a internet, tudo está contando história. O cinema tem muito mais possibilidades", ele diz. Para o diretor, a história é importante, mas como um veículo para outras coisas. No caso de seu último filme, ela é menos importante como enredo e mais importante como base para a exploração da fotografia e dos conflitos da instituição familiar.

A casa – a toda vazada, iluminada, com espelhos, vidros e muito branco – é como uma personagem do filme. "Quis retratar a decadência rodeada de branco, com os códigos aristocráticos, como conchas e pérolas", diz Valdívia. E as personagens do filme, todas amarradas pela matriarca Carola, parecem presas às paredes daquele imóvel suntuoso, e a uma vida de riquezas que não existe mais.

O filho mais novo, Andrés, é personagem autobiográfica. O menino é ativo, sempre está questionando e interferindo nas ações dos adultos. Assim como o diretor quando criança, pinta, vende suas pinturas aos amigos dos irmãos mais velhos e tem boas recordações de quando sua mãe tinha tempo para brincar com ele e o ensinou a "voar". O diretor é como o garoto, o único ali que se sente liberto da casa. Andrés passa boa parte do tempo sobre o telhado conversando com um amigo invisível. Esse olhar descolado do que se passa dentro do imóvel é a distância que o diretor precisa para criticar a família da elite boliviana, que é a sua e muitas outras de sua La Paz contemporânea.

Juan Carlos Valdívia veio a São Paulo para a Semana de Orientação da Academia Internacional de Cinema (AIC), que oferece palestras gratuitas até sexta-feira (clique para ver a programação). Ele contou que, no voo para a capital paulista, recebeu um telefonema triste – sua mãe havia morrido. "Ela me ensinou a voar e eu estava no ar quando recebi a notícia", ele diz. "Existem metáforas e imagens que a vida nos dá para tentarmos entender por que estamos aqui", afirma. Ele conversou com ÉPOCA no dia seguinte à palestra, na sede da AIC.
ÉPOCA – Zona Sur é um pouco autobiográfico, mas fala muito da atual situação pelo qual atravessa seu país. O que, além de alguns comportamentos de Andrés, fez parte da sua vida?
Juan Carlos Valdívia – O filme é uma espécie de Frankenstein (risos). A família tem um monte de pedaços, uma forma de recuperar minha memória. Eu conheço bem todos os personagens e situações, e a partir disso fiz algumas reinvenções. Eu não queria copiar fórmulas. Com o filme, vi que posso inventar, reinventar, inovar. E inovar falando de mim, da minha família e do meu país. Eu também quis romper com o cinema de denúncia, de crítica social, que eu chamo de cinema da "pornomiséria", que exporta pobreza e miséria. A crítica social não tem que focar somente nisso.


Arquivo
Em pé, da esq. para a dir.: Wilson (Pascual Loayza), Marcelina (Viviana Condori), Valdívia. Sentados: Bernarda (Mariana Vargas), Patricio (Juan Pablo Koria), Carola (Ninón del Castillo) e Andrés (Nicolás Fernández)
ÉPOCA – Este é um filme que inicia uma nova etapa da sua vida como diretor. E, ao mesmo tempo em que sua mãe foi retratada no filme, e de certa maneira homenageada, ela faleceu há poucos dias. O filme é como um ritual de passagem profissional e emocional para você?
Valdívia – Na verdade, eu terminei o filme há um ano e meio e minha mãe morreu no domingo (30). E não é uma homenagem... o filme tem a figura do oxímoro (paradoxo), porque é contraditório. Tem uma homenagem, mas critica. Aquela mansão é doce e envenenada. Foi uma decisão consciente dar ao filme esses sentidos contraditórios.

Há muitas famílias decadentes como essa, que vivem num país que está sofrendo uma transformação social e seria fácil criticar uma família de classe dominante. Ao mesmo tempo, estou criticando a minha própria família e fazendo um retrato de meu país. A câmera gira de uma maneira implacável e cruel. Ela reflete o que essa família passa.

ÉPOCA – Você não toma partido no filme, mantém uma distância das questões...
Valdívia – Há uma distância e a distância é sempre crítica.

ÉPOCA – Quanto tempo demorou para fazer o filme?
Valdívia – Seis meses. Fazer um filme é a expressão de um certo momento da vida. O homem muda, por isso gosto de fazer rápido meus filmes, porque (se demorar) eu mudo e quero mudar o filme. É importante respeitar o momento em que se cria.

ÉPOCA – Quando o filme vai estrear no Brasil? Você disse que tem alguns distribuidores interessados.
Valdívia – Não sou eu que estou tratando com os distribuidores. Mas o filme foi bem acolhido em todos os lugares em que foi exibido, e será lançado em vários países da América Latina – Peru, Uruguai, Argentina, México. Estamos (o cinema) precisando de novas propostas na América Latina e, quando há lago diferente, as pessoas abraçam. E é bom que estejamos em uma fase em que países pouco expressivos no cinema, como Bolívia, Chile e Peru, estejam produzindo bons filmes.
Arquivo
Andrés quer voar com sua mãe, e vive no telhado da casa carregando suas "asas"
ÉPOCA – Quais países você acha que têm uma indústria cinematográfica forte e com produções realmente importantes na América Latina?
Valdívia – México, Argentina e Brasil são os mais importantes, e Cuba, que é uma espécie de Meca do cinema por causa de suas escolas. O Brasil é meio isolado do resto...

ÉPOCA – Talvez por causa do idioma...
Valdívia – Sim, por causa do idioma, mas todos esses países têm coisas em comum.

ÉPOCA – Você critica muito a indústria do entretenimento americana...
Valdívia – Os filmes comerciais são cada vez maiores, mais caros e mais vazios. O 3-D é visto como a última Coca-Cola do deserto (risos). As coisas simples não nos comove mais e é perigoso perder a capacidade de ver e ouvir. A palavra é importante, mas estamos sendo invadidos por imagens, é um assalto aos nossos sentidos. Mas tem um público que procura algo mais contemplativo... Eu vivo de publicidade, sou prostituto profissional (risos). Há regras muito claras na publicidade e não posso converter meus filmes num comercial de TV, não posso seguir as mesmas regras. Eu precisava de um espaço na minha vida para um filme como Zona Sur. Agora eu não estou disposto a fazer concessões. É o primeiro filme que ficou exatamente do jeito que eu queria.

ÉPOCA – Como você enxerga o cinema latinoamericano hoje? Sobre o que ele fala e sobre o que ele deveria falar mais?
Valdívia – O cinema tem que ser completo. O público quer um cinema light e de entretenimento, por isso também tem que fazer esse tipo de filme. Mas são importantes as obras que têm valor artístico porque marcam horizontes, e é o que me interessa fazer. Temos um sistema muito cruel e muito difícil em que é preciso fazer muitas concessões e jogar as regras das distribuidoras que controlam o mercado. A mim não interessa isso, o que me interessa é criar. Por que eu vou querer um público tão amplo? Quanto maior o público, menor a complexidade do filme.

ÉPOCA – E o que responderia se fosse convidado a dirigir um filme nos EUA?
Valdívia – Tenho uma oferta de um produtor para dirigir um filme em inglês em países sulamericanos, o roteiro está pronto. Seria para fazer depois do meu próximo filme, que é uma parceria com o México. Este projeto (americano) é interessante porque é em inglês, mas independente, sobre um tema latino e eu terei autoridade sobre ele. Pode ser uma transição interessante a esse mundo (produções americanas). O importante é seguir crescendo, e estou com boas perspectivas.

ÉPOCA – Com quais outros países você tem vontade de trabalhar em parceria?
Valdívia – Sempre fiz um esforço muito grande para conseguir fazer meus filmes e pela primeira vez vejo uma luz, e um monte de possibilidades (risos). Eu tenho compromisso com a qualidade, isso é o que me interessa. Zona Sur abriu me abriu as portas e agora tenho mais facilidade. O que virá no futuro? Ainda não sei. Eu digo que o êxito não é ter sucesso ou dinheiro. O êxito é quando as coisas são fáceis, quando vêm de uma maneira orgânica e fácil.
ÉPOCA – Existe algum país que tenha uma indústria de cinema que possa servir de exemplo aos latinoamericanos?
Valdívia – A Índia, que é um país continental, tem uma indústria imensa, um cinema só deles. E, dentro, tem pequenas indústrias regionais, de documentários, filmes de arte... O sudeste asiático também, a Coreia está se saindo bem. A França é sempre uma referência, porque impõe resistência cultural (ao cinema estrangeiro) e encara o cinema como assunto de Estado.

Fazer cinema é um ato de resistência cultural. Essa resistência é muito importante para este lado do mundo. Americanos e europeus estão filmando na Bolívia. Não só nossos cenários, como nossas histórias interessam a eles. Um filme como Avatar, por exemplo, deveria ter sido feito aqui (na América Latina). Para os Estados Unidos, aquela história é uma fábula, para nós é real. Tem todo um mundo indígena aqui. Nunca conseguimos fugir desse colonialismo, por isso temos que contar a nossa história.

ÉPOCA – Porque se o americano conta a nossa história, será a visão dele, e não nossa...
Valdívia – E você sabe como é a visão deles... (risos)

Veja trailer do Filme : http://www.youtube.com/watch?v=vBm3q9d_GMI

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