sábado, 12 de fevereiro de 2011

A "mão boba" dá lugar à utopia

O que parecia impossível há apenas 20 dias aconteceu na sexta-feira: a rua egípcia derrubou uma ditadura de 30 anos. Realizado o impossível, vem o mais difícil, que é organizar a transição para a democracia, em um país e em uma região que têm escassa tradição democrática, se é que tem alguma.

Para começar, há um antecedente, cravado na memória coletiva do país, que dá razão à desconfiança quanto ao fato de que a saída de Mubarak por si só abra o caminho para a democracia.

Em fevereiro de 1954, um militar como Mubarak, Gamal Abdel Nasser, também viu seu governo cercado por milhares de manifestantes em seu palácio, exigindo o retorno a um governo civil, a libertação de todos os prisioneiros políticos e a restauração do Parlamento - agenda muito parecida com a de 2011.

Nasser prometeu reformas, anunciou eleições livres para junho daquele ano, e os manifestantes foram para casa. "A ação [de retirada] custou ao Egito 57 anos sem liberdades básicas", contabiliza Omar Ashour, diretor do Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos da universidade de Exeter (Reino Unido).

Esse episódio mais a visceral desconfiança do Ocidente em relação à possibilidade de que países árabes e/ou muçulmanos possam de fato se democratizarem explica a análise feita para a "Foreign Affairs" por Joshua Stacher, professor assistente de Ciência Política da Kent University e que prepara livro comparando o autoritarismo no Egito e na Síria:

"Aqueles que cercam o combatido presidente e que constituem o regime egípcio, de forma mais abrangente, asseguraram-se de que a viabilidade do Estado nunca fosse posta em questão. A instituição central do país, os militares, que historicamente influenciaram a política e têm o comando quase monopólico sobre interesses econômicos, nunca relutaram".

Não relutaram nem mesmo ante o afastamento de seu chefe, como se tratasse de entregar o anel (ou os anéis, contabilizando o vice-presidente Omar Suleiman) para preservar os dedos, evitando que o sistema simplesmente caísse na rua.

Feitas essas observações digamos pessimistas, não parece haver espaço para que a ditadura se mantenha, agora sem o ditador. Mais - e melhor: minha impressão à distância é que o que aconteceu no Egito não tem paralelo com as revoluções ocorridas no século passado ou com outros processos de democratização como os da América Latina.

Um detalhe, micro, mas micro mesmo, chama a atenção: há relatos de mulheres que contam que desde o 25 de janeiro podem circular tranquilamente pelas aglomerações sem o risco de uma "mão boba", tão característica nas localidades turísticas do Egito como as pirâmides.

Pode ser ingenuidade minha, mas uma tal mudança de mentalidade dá um ar de utopia à rebelião egípcia, capturada de resto por um de seus principais escritores, Alaa El-Aswany. Em entrevista para o "Independent" britânico, diz que "um homem verdadeiramente apaixonado se torna uma pessoa melhor", e acrescenta: "Uma revolução é algo parecido: todos os que dela participam sabem que tipo de pessoas eram antes de que começassem as manifestações e agora se sentem diferentes".

Uma segunda versão épica-idílica para a revolta aparece em texto de Assia Al-Atrouiss para "Al-Sabah" ("A Manhã", do Iraque): "Os povos não aceitam mais morrer em silêncio; aspiram viver com dignidade".

Fecha com uma frase que é prudente comprar: "Isso deixa abertas todas as hipóteses para o futuro".

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