segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Da tela para as ruas - ALCINO LEITE NETO

CINEMA

Da tela para as ruas

Apogeu e queda da cinefilia

RESUMO
Na idade de ouro da cinefilia (1945-68), a militância de jovens críticos como Godard e Truffaut elevou o cinema, em especial o de diretores então malvistos, como Hitchcock, ao status de obra de arte. Ensaios examinam o ambiente político e ideológico na crítica parisiense e as perspectivas da cultura cinéfila no século 21.






ALCINO LEITE NETO
ilustração MARINA RHEINGANTZ

O GÊNIO ARTÍSTICO de Alfred Hitchcock é hoje uma unanimidade. Pouquíssimos ousariam contestar o valor estético e intelectual de seus filmes. E seria considerado um palerma o crítico que pretendesse ver a sua obra como o resultado de ideias conservadoras e até de direita. A crítica acabou instalando o diretor britânico num panteão sagrado, que fica além de toda ideologia e onde vigora apenas a pura paixão cinéfila.
Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que Hitchcock foi duramente contestado. E houve um tempo em que a cinefilia não estava aquém ou além das ideologias políticas. Se voltássemos ao início dos anos 50, em particular na França, encontraríamos a crítica dividida em tribos rivais: os hitchockianos e os anti-hitchcockianos. E logo descobriríamos em que horizonte político cada uma se movimentava: a primeira, à direita; a segunda, à esquerda.
Em ataque a Hitchcock e aos hitchcockianos, assim se expressou o crítico Ado Kyrou, na revista "Positif", no início dos anos 50: "Feliz da vida por se ver arrastado para os píncaros (ainda que sejam os do fascismo), Hitchcock deixa-se levar. [...] Seus equívocos tornam-se achados geniais; seus buracos são preenchidos com significações profundas, seus cacoetes são decuplicados, seus supostos temas ganham proporções de símbolos e toda uma juventude é assim arrastada não apenas para um cinema tedioso (o que afinal de contas não é grave), e mais, para uma cultura neonazista".

DIREITA
Se Kyrou poderia ser situado entre os cinéfilos de esquerda da época, entre os de direita deveríamos reunir François Truffaut, Eric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette e até Jean-Luc Godard -os principais defensores de Hitchcock e do cinema americano na década de 50.
Parece impensável que Godard, ex-militante maoísta e um dos críticos mais virulentos de Hollywood e do capitalismo, estivesse, na juventude, enquadrado entre os conservadores políticos da crítica francesa. Mas foi o que ocorreu. O diretor de "Filme Socialismo" chegou a ser assessor de imprensa de uma das "majors" hollywoodianas, a Fox, segundo a biografia "Godard - A Portrait of the Artist at Seventy", de Colin MacCabe.
Rohmer, por sua vez, movido por intenso idealismo estético e a paixão pelo classicismo francês e alemão, pregava a predominância do Ocidente sobre a cultura mundial e definia o cinema como "a expressão de uma civilização e de uma raça superiores". Quase todos estavam também imbuídos de forte herança católica, às vezes de viés místico, que aplicavam inclusive à análise de Hitchcock, ele próprio um ex-aluno de colégio jesuíta.
As posições políticas tomadas pelo jovem Truffaut foram ainda mais complicadas. Além de crítico assíduo na direitista "Arts", entre outras revistas conservadoras, chegou a defender a monarquia e a censura. "É à censura cinematográfica americana que devemos o fato de Marlowe não ser mais pederasta e de alguns de seus personagens se tornarem amáveis, outros detestáveis. É preciso, portanto, uma censura moralista...", escreveu, nos "Cahiers du Cinéma", em 1954.
Outro episódio escandaloso de Truffaut foi o contato estreito que teve com um ex-colaboracionista, o crítico Lucien Rebatet, que durante a ocupação nazista da França havia defendido a "depuração antissemita" do cinema e foi preso no final da Segunda Guerra.
São fatos como esses que levaram o historiador francês Antoine de Baecque a perguntar: "A crítica moderna de cinema é de direita?". A questão é um dos pontos cardeais de "Cinefilia - Invenção de um Olhar, História de uma Cultura 1944-1968". Lançado na França em 2003, o livro ganha versão brasileira [trad. André Telles, Cosac Naify, 472 págs., R$ 82] na ótima coleção Cinema, Teatro e Modernidade, coordenada por Ismail Xavier.

HISTÓRIA CULTURAL
"Cinefilia" é imprescindível para todos os que se interessam de maneira madura pelo cinema e seu trajeto cultural. Historiador de formação, com trabalhos sobre o século 18 francês, De Baecque foi diretor dos "Cahiers du Cinéma" e editor de cultura do jornal "Libération", escreveu uma importante biografia de Godard, lançada no ano passado, e outra de Truffaut (em 1996, com Serge Toubiana), fez o roteiro do documentário "Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague" (dirigido por Emmanuel Laurent) e publicou livros sobre Andrei Tarkovski, Manoel de Oliveira e Tim Burton. Sua principal contribuição tem sido a de abordar -com erudição, muita pesquisa e farta documentação inédita- o cinema dentro da história cultural francesa e mundial, e não como objeto isolado ou deslocado.
Assim, no livro, ficamos livres de abordagens que buscam explicar a paixão pelo cinema numa perspectiva psicologista ou idealista. O pesquisador demonstra como a cinefilia é uma construção histórica, relacionada a contextos precisos e impregnada pelos debates culturais e pelas forças políticas.
"A cinefilia é sem dúvida uma cultura construída em torno do cinema, um cruzamento de práticas historicamente contextualizadas, atitudes historicamente codificadas, tecidas em torno do filme, de sua visão, de seu amor e de sua legitimação", define De Baecque.
Para ele, embora o amor pelo cinema possa remontar aos primórdios desta arte e se estenda até os dias atuais, a cinefilia -como cultura, cerimônia, sociabilidade, militância e discurso- teve uma "idade de ouro": do final da Segunda Guerra até Maio de 1968. E teve um habitat principal: a França, em particular Paris.
Ainda que alguns enxerguem limitações nesse recorte, é incontestável que o cinema e a cinefilia jamais ganharam tanta expressão quanto na França, entre os anos 50 e 70, a ponto de influírem no debate público e transformarem mentalidades. Um apaixonante relato sobre o modo como a paixão cinéfila dominou a geração francesa do pós-guerra foi feito pelo escritor J.M.G. Le Clézio, Prêmio Nobel de 2008, em "Ballaciner" (2003), ainda inédito no Brasil.

BAZIN
O período leva ao apogeu o esforço, que remonta à década de 1920, de parte da intelligentsia francesa em legitimar o cinema como arte. No pós-Segunda Guerra, surge uma forte rede de cineclubismo, de todos os matizes ideológicos, além de grupos e revistas empenhados em abordar os filmes com respeito igual ao que outros dedicavam, por exemplo, à literatura. De Baecque chega a relacionar essa importância do cinema na história cultural francesa a uma "sociabilidade do olhar e de um espírito crítico cuja fonte tradicional é a frequentação dos salões de pintura do Ancien Régime".
No centro dos acontecimentos estão dois personagens: o historiador comunista Georges Sadoul e o crítico André Bazin, liberal próximo da esquerda católica e "homem-encruzilhada da cinefilia francesa", diz o autor. "Antes da guerra, nenhum intelectual de renome ia ao cinema, nenhum pensara em comentar um filme a posteriori. Entretanto, Bazin fala dos filmes como se comentasse um romance de Dostoiévski", comenta o biógrafo Dudley Anderson, citado por De Baecque.
Truffaut, Rohmer, Godard, Chabrol e outros jovens críticos não alinhados à então vigorosa esquerda comunista francesa vão se reunir em torno de Bazin, cujo catecismo em favor do realismo "ontológico" da imagem cinematográfica será a mola propulsora da nova crítica.
Com o patriarca, eles criarão a revista "Cahiers du Cinéma" (há 50 anos, em abril de 1951). E juntos darão início a uma feroz militância em favor de diretores menosprezados (de americanos a Bergman e Rossellini) e a um ataque sistemático, às vezes a contragosto de Bazin, ao cinema francês dominante no período -literário, esquerdófilo e acadêmico (o "cinema de qualidade")-, afronta que culminará no artigo-manifesto de Truffaut, "Uma Certa Tendência do Cinema Francês" (1954). No final dos anos 50, já como diretores, erguerão o movimento da Nouvelle Vague, que revolucionará a estética cinematográfica.

FULLER
O "caso Hitchcock" é central na fundação da crítica moderna. Mas quase tão bombástica quanto a campanha a favor do diretor britânico foi a que Godard e companhia moveram em defesa do americano Samuel Fuller, atacado pela esquerda francesa como anticomunista e fascista.
Seu filme "Anjo do Mal" ("Pick-up on South Street", 1953), que abordava a caça aos comunistas, chegou mesmo a ser censurado pelo governo francês, que temia a reação do público -em cada 4 eleitores, 1 votava no PCF, em meados dos anos 50, segundo De Baecque. Quando liberado, o filme levou o nome de "Port de la Drogue" (Porto da Droga) e teve duas versões nas telas: numa delas, a banda sonora substituía as palavras "comunismo" e "comunistas" por "droga" e "traficantes".
Os jovens críticos não mediam as consequências se a questão era defender os filmes que eles amavam e esta "ideia do cinema radicalmente nova", nas palavras de De Baecque: a de que "o conteúdo de um filme, sua mensagem, se preferirmos, consiste integralmente na forma cinematográfica desdobrada pela 'mise en scène', não residindo na tese sugerida por um filme, nem em seu roteiro, nem em seus diálogos".
Ou seja, o pensamento -e mesmo a moral- de um autêntico diretor-autor não se manifesta na parte "verbal" ou "literária" do filme, mas na forma de encenação cinematográfica (movimentos de câmera, enquadramentos, iluminação, sonoplastia, montagem etc.). "O crítico moderno de cinema constitui-se, nesse início dos anos 50, precisamente em torno dessa ideia, que tem o mérito de rechaçar a velha dicotomia propondo em seu lugar uma afirmação original: o fundo de um filme é sua forma", explica o historiador. A "mise en scène" é a verdadeira escrita cinematográfica e define o valor autoral e intelectual da obra de um diretor.
Esta concepção inédita -atacada como neoformalista pelos seus opositores- permitirá a consagração de Hitchcock, Fuller e outros como "diretores-autores". De quebra, no ambiente politicamente sensível e cindido da Guerra Fria, a nova visão do cinema provocará a crise dos engajamentos da crítica, colocará em xeque o stalinismo da inteligência francesa e abrirá um novo horizonte de análise dos filmes.

HISTÓRIA DA ARTE
Foi uma batalha vitoriosa, que durou menos de uma década. Não à toa, Godard pode escrever em 1959: "Vencemos ao provar o princípio segundo o qual um filme de Hitchcock, por exemplo, é tão importante quanto um livro de Aragon. Os cineastas, graças a nós, entraram definitivamente na história da arte".
Essa luta apaixonante não é o único assunto do livro de De Baecque, que também traz capítulos dedicados a Georges Sadoul e à revista "Positif", faz uma importante reavaliação da crítica cinematográfica de Bernard Dort -difusor de Brecht na França e mais conhecido por seu trabalho em teatro-, além de uma imprevista abordagem (histórica) sobre a "educação erótica" cinéfila e os mitos femininos nas telas.
Três eventos indicam o fim da idade de ouro da cinefilia, no entender de De Baecque -todos eles relacionados a disputas políticas e culturais com o governo De Gaulle (1958-69). Primeiro, a inesperada proibição do filme "A Religiosa", de Jacques Rivette, em 1966, que Godard considerará o fim da inocência dos nouvelle-vaguianos.
Dois anos depois, o enfrentamento de cinéfilos e cineastas com o ministro da Cultura, André Malraux, que havia demitido o mitológico Henri Langlois da diretoria da Cinemateca Francesa -episódio ao qual De Baecque traz nova luz, ao revelar que Langlois não era tão zeloso assim da conservação do acervo. Em fevereiro de 1968, a crise da Cinemateca culminará num violento choque de 3 mil manifestantes (entre eles Godard) com a polícia -evento que é considerado por alguns como um ensaio das revoltas de maio.

POLITIZAÇÃO
Truffaut, que se afastara em definitivo da direita no final dos anos 50, embora nunca tenha aderido à militância de esquerda, em março de 1968 envia ao socialista François Mitterrand documentos que permitiriam a este explorar politicamente, contra os gaullistas, o episódio da Cinemateca, que mobilizou a opinião pública. "O caso de Truffaut é um exemplo perfeito dessa politização progressiva da cinefilia francesa", diz De Baecque.
Por fim, a rebelião que, em maio, inflama as ruas de Paris (e, depois, do mundo), também esvazia a "sala escura que protege a cinefilia clássica". O último capítulo do livro -breve, mas excelente- é dedicado ao jornalista Serge Daney (1944-92), expoente da crítica francesa nos anos 1970/80, cuja reflexão, ainda muito atual, foi dedicada em boa parte à questão do desaparecimento da cinefilia clássica e do cinema como experiência coletiva.
O cinema vai perdendo o privilégio que tivera ao longo do século 20 de registrar os eventos da história e expor o Zeitgeist. Torna-se uma arte "minoritária", num mundo em que tudo é imagem (televisiva, publicitária etc.) e cujo escopo principal passa a ser a "comunicação", "a beleza consensual" e o "ícone meramente informativo" (De Baecque). Com as novidades tecnológicas, a sala de cinema também se transforma num espaço arcaico ou nostálgico, em decorrência da crescente produção de instrumentos que visam a fruição individual -ou, no máximo, familiar- das imagens, esgotando a força da experiência coletiva das salas de projeção.
Esse debate é já antigo, mas vê-se que não terminou. Prova disso é a mobilização em prol do Cine Belas Artes, que se encontra à beira da extinção. Um dos derradeiros templos da cinefilia em São Paulo, o lugar já não consegue sobreviver apenas de seu público e precisa que o Estado venha em seu auxílio. Sucede daí o polêmico esforço de tombamento de um espaço arquitetonicamente desprovido de interesse, mas historicamente representativo. Mas será que, de fato, o que se deseja tombar -e tentar preservar contra a inclemência do tempo- não seria a própria cinefilia ou mesmo uma experiência nostálgica do cinema?

FUTURO
A questão do futuro do cinema mobiliza também o excepcional crítico americano Jonathan Rosenbaum no recém-lançado "Goodbye Cinema, Hello Cinephilia: Film Culture in Transition" [Chicago University Press, 376 págs., US$ 25]. Para ele, é preciso considerar hoje, na análise dos filmes, que velhas e novas gerações já não se referem ao cinema da mesma maneira e nem sempre estão pensando na mesma coisa.
Rosenbaum considera uma atitude "idealista" achar que cinema seja algo que aconteça apenas "dentro de uma sala, numa tela", pois esta não pode ser mais "uma descrição prática que se aplica à experiência da maioria das pessoas". Aos 64 anos, ele rejeita sentimentos saudosistas ou de aversão às condições atuais da difusão de filmes, enxergando vantagens nas novas tecnologias e vendo saídas em ações comunitárias que possam criar um novo público cinéfilo e participativo.
O crítico evita arriscar hipóteses sobre o futuro do cinema e a cinefilia do futuro, mas reflete: "O ponto básico é que ainda há cinéfilos muito mais jovens do que eu e que estão cheios de excitação a respeito de filmes feitos mesmo antes dos dias gloriosos de Louis Feuillade e Yevgeni Bauer [pioneiros do cinema mudo], e esta situação não está sujeita a alteração, ainda que os locais e os contextos em que os filmes são vistos e compreendidos se transformem radicalmente".
A "morte" do cinema e o destino da cinefilia não são os temas exclusivos do livro de Rosenbaum, uma coletânea de artigos escritos nos últimos anos -inclusive para sites e blogs-, sobre os mais diversos assuntos: o cinema clássico, a produção americana atual, as estratégias contemporâneas do marketing e o impacto da difusão digital.
No conjunto e no particular, os artigos são uma vibrante demonstração da força que o cinema, apesar de "minoritário", ainda preserva na cultura. E são também uma prova da vitalidade e da importância da crítica cinematográfica, ainda mais se feita por um espírito livre e aberto às transformações de seu tempo

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