domingo, 30 de outubro de 2011

A pátria sob os refletores - SERGE KAGANSKI

CINEMA

A pátria sob os refletores

Os "beurs" ganham a TV e o cinema na França

RESUMO Entre o polêmico debate governamental sobre a pureza da identidade nacional e uma esquerda que não reconhece os conflitos inerentes à questão, uma geração de artistas de origem árabe faz do cinema e da TV o trampolim para a integração e a consolidação de uma França multicultural.

SERGE KAGANSKI
TRADUÇÃO PAULO WERNECK

Nos últimos meses, a França parecia sofrer de uma forte coceira. Esse prurido antigo, recorrente, ganhava desta vez um novo nome: a identidade nacional.
Estimulada pela criação do Ministério da Identidade Nacional e da Imigração, pela política de cotas de expulsão de imigrantes clandestinos, pela instauração oficial de um debate sobre a identidade nacional, pelas declarações incendiárias dos ministros do Interior, Brice Hortefeux (condenado por declarações racistas), depois Claude Guéant, inflamada pela política de Nicolas Sarkozy no delicado contexto pós-11 de Setembro, a identidade nacional se tornou uma picada de mosquito, depois um ataque de urticária que a França coçou até sair sangue.
Seria o tema da identidade nacional problemática e até ameaçada uma realidade ou uma distorção cinicamente exagerada pelo poder político a fim de fazer com que outras questões, como o desemprego ou o poder de compra em baixa, sejam esquecidas?
Faz tempo que a França é uma terra de imigrantes e uma nação cada vez mais mestiça. Nos anos 1920, conheceu uma forte imigração polonesa e judaica, depois italiana, nos anos 40 e 50, e por fim magrebina e africana, com a descolonização nos anos 50 e 60.

FUTEBOL Não por acaso, os jogadores de futebol franceses mais emblemáticos foram Raymond Copa (de origem polonesa), Michel Platini (de origem italiana) e Zinedine Zidane (de origem argelina), e a seleção francesa nos últimos dez anos é majoritariamente composta por jogadores negros, o que foi objeto de zombaria não só de Jean-Marie Le Pen, líder do partido nacionalista Front National, mas também do socialista Georges Frêche e do intelectual Alain Finkielkraut, que da extrema esquerda passou para um certo conservadorismo cultural.
Simplificando, a posição clássica da direita mais dura é ver a imigração como uma invasão, um corpo estrangeiro, incompatível como os valores franceses e que periga dissolver a França e o seu povo. No campo oposto, a posição de esquerda mais radical considera a imigração uma sorte e uma riqueza que não trazem problema nenhum. A realidade certamente está em algum meio-termo entre essas visões extremas.
A menos que se acredite que todos os franceses são de origem gaulesa, a França pura e original é uma fantasia: o país se construiu na fermentação de populações, e seu próprio nome vem de um povo germânico, os francos, que invadiram a Gália entre os séculos 3º e 5º.

CULTURA Fora do esporte, a área em que essa mestiçagem é mais visível, mais acabada, é a cultura, principalmente o cinema. Nos últimos anos, surgiram grandes cineastas (Abdellatif Kechiche), diretores de sucesso (Rachid Bouchareb, Djamel Bensallah...), atores de primeira (Roschdy Zem, Sami Bouajila, Leila Bekhti, Hafsia Herzi, Tahar Rahim...), bem como uma nova onda de humoristas populares, que navegam entre a TV e o cinema (Jamel Debbouze, Eric e Ramzy, Omar e Fred...).
São os "beurs" e as "beurettes" -na gíria, os homens e as mulheres de origem árabe- que arabizaram a cultura, a língua e o humor franceses, filhos da França e da imigração que contradizem em atos as teorias mais pessimistas e as ações governamentais mais cínicas.
Mas, se o mundo da cultura hoje está mais avançado que uma fatia do mundo político (e da sociedade?), as coisas nem sempre foram fáceis, como diz o ator Sami Bouajila: "O crime das aparências tornou as coisas mais lentas". A expressão "crime das aparências" é uma forma irônica que os franceses usam para se referir ao preconceito automático enfrentado pelos descendentes de árabes.
"Foi aí que a minha formação, meu trabalho de ator, minha educação, me foram úteis, porque eu aspirava a alguma coisa. Eu pensava: este é o meu caminho, talvez mais lento do que o de outros, mas é preciso reivindicá-lo. O lado bom do crime das aparências para atores como eu e Roschdy Zem é que a gente ganha tempo de construir um alicerce, uma base para um trabalho verdadeiro e profundo." Já o humorista Ramzy Bedia aponta a especificidade da imigração magrebina: "A mesma coisa aconteceu com os poloneses ou com os italianos. Com a gente é mais difícil, porque temos outra religião, e a Guerra da Argélia também aconteceu aqui, de certo modo". A observação é pertinente. A Guerra da Argélia (1954-62) deixou traços profundos nos dois países, feridas e não ditos prestes a ressurgir ao menor aumento de tensão.
A relação entre França e Argélia é urdida por uma mistura muito complexa e paradoxal de proximidade, passado comum e preconceitos entre dominados e dominadores. O atentado contra o World Trade Center e a desconfiança geral com o islã acrescentaram uma nova camada de complexidade.
No entanto, se o racismo e a islamofobia existem na França, não podemos falar numa grande onda antimuçulmana. Há 50 anos, os franceses se acostumaram a viver com seu componente árabe; as estatísticas indicam que os casamentos mistos são mais numerosos; e o islã se inscreve progressivamente na paisagem francesa.

ISLÃ MODERADO Sami Bouajila tem uma explicação: "O islã dos magrebinos da França sempre foi moderado. Nossos pais são de uma tolerância que vocês não calculam, e têm uma capacidade de adaptação que é desprezada. São pessoas generosas, ambiciosas, curiosas, aventureiras, modernas. O modo como o sistema estigmatizou tudo isso, atrás de um véu, das periferias, é simplista. Quando nossos pais olham as notícias na TV e veem que os islamistas disseram isso ou fizeram aquilo, não se sentem incluídos. É um erro abordar a questão da diversidade pelo viés da religião".
Na verdade, a integração é um processo de fôlego e talvez seja preciso paciência, recuar no tempo lento da história, para que a questão "beure" não seja um problema, nem mesmo uma questão.
O cineasta Malik Chibane resume sua experiência: "Um diretor de TV me telefonou, dizendo que gostava dos meus filmes, mas que não podia transmiti-los porque tinham árabes demais. Isso foi há 15 anos. Nesse meio tempo, houve uma evolução inegável. Com perseverança e trabalho, os descendentes da imigração podem chegar lá. Precisamos disso, da cultura como força motriz". Sami Bouajila compartilha esse sentimento: o caminho é longo, ainda não chegamos ao nosso objetivo, mas, graças à cultura, entre outras coisas, nos aproximamos cada vez mais dele.
"Nossos êxitos mostram que as coisas vão na direção certa. Mas eu diria que, em primeiro lugar, não poderia ser de outro jeito e, em segundo lugar, ainda estamos bem longe do ajuste de contas", diz Bouajila. "O choque de culturas existe. Para ir contra ele, é preciso educar. Para isso, o sistema precisa proporcionar os meios, o que ainda não aconteceu. A partir do momento em que aceitarmos nossa história e quem somos, isto é, um país mestiço, já que a França foi um império colonial, nossa mestiçagem será vivida como um trunfo. Seremos então uma sociedade orgulhosa e forte, como na época da Copa de 98."

OTIMISMO O mais otimista, ou o mais lúcido, é o ator Ramzy Bedia, que acredita que a mestiçagem é um processo irreversível, o que nos obriga a dar um jeito de que tudo esteja bem.
"Só pode terminar bem. Não sou otimista dizendo isso, sou realista. Em 20 anos, tudo vai dar certo. Não há outra escolha, é a evolução natural das coisas. No entanto, vemos uma retomada do islã, o Front National crescendo, ambos os lados se crispam, mas esses fatos só podem se anular. Nunca vamos voltar para casa, pois a nossa casa é aqui. E temos filhos com vocês. O que é 100% certo é que esta história vai acabar bem. Não vamos fazer barricadas e dividir a França em duas, isso é impossível."
O governo Sarkozy bem que tentou dividir os franceses, mas não conseguiu. O debate sobre a identidade nacional fracassou e se voltou contra seus instigadores. Com a atual crise econômica e financeira, os franceses têm outras preocupações na cabeça e entendem majoritariamente que o especulador de Wall Street é mais perigoso que o migrante expulso de casa pela miséria.
No cinema, os artistas árabes são cada vez mais numerosos e populares e, de Abdel Kechiche a Tahar Rahim (o ator principal de "O Profeta"), colecionam Césares, a maior láurea do cinema francês. Essa onda "beur" começa a ser reconhecida no exterior: Rachid Bouchareb acaba de começar um ciclo de três filmes americanos.
Seu produtor em Hollywood, Charles Cohen, declarou: "Aprecio muito a sensibilidade e o profissionalismo de Rachid Bouchareb, cujo talento não vai demorar a ser verdadeiramente reconhecido nos EUA." De seu lado, o diretor de "Indigènes", que foi injustamente atacado pela extrema direita francesa durante a apresentação em Cannes de seu último filme, "Fora da Lei", resumiu ao "Le Monde" a situação: "Venho da África do Norte, moro em Paris, faço filmes norte-africanos, argelinos e franceses, e agora filmes na América. Mas as histórias são universais. Continuo interessado nas relações entre o mundo árabe e o Ocidente e faço essas perguntas: quem somos? Para onde vamos? Por que é preciso ter esperança nessa relação?"
Ao problematizar ou desdramatizar as relações entre a França e os descendentes de suas ex-colônias, ou simplesmente ao contar esta história complicada, o cinema franco-árabe encarna a França de hoje na ficção e em ações, diante das câmeras e atrás delas, esboçando a promessa de uma França de amanhã que não vai sofrer de ataques de coceira.

A menos que se creia que todos os franceses têm origem gaulesa, a França pura é fantasia: o país se construiu na fermentação de povos, seu nome vem de um povo germânico

Fora do esporte, a área em que a mestiçagem é mais visível é a cultura, especialmente o cinema. Nos últimos anos, surgiram grandes cineastas e atores de primeira

"Nunca vamos voltar para casa, pois a nossa casa é aqui. E temos filhos com vocês. Esta história vai acabar bem. Não vamos fazer barricadas e dividir a França em duas"

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