sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Wikileaks leva à revisão de valores

Valor Econômico - 03/12/2010
O impacto das novas tecnologias sobre o universo da comunicação é difícil de ser medido. Pode, porém, ser estimado por fenômenos como o Wikileaks, que nesta semana provocou protestos de governantes ao redor do mundo, após iniciar a publicação na rede de 250 mil documentos diplomáticos secretos dos Estados Unidos. A dureza das reações, que chegam às ameaças de prisão e sugestões de censura, demonstram que as facilidades de interação oferecidas pela internet põem em xeque a política tradicional.

A diversidade das reações denota perplexidade entre atores geopolíticos. O Ministério italiano das Relações Exteriores classificou o vazamento como um "11 de Setembro diplomático". Mahmoud Ahmadinejad declarou que tudo não passa de um golpe estratégico do próprio governo dos EUA. O governo russo enxerga uma conspiração para desestabilizar o presidente Barack Obama. Na segunda-feira, Hillary Clinton afirmou que Wikileaks é um "ataque ao mundo".

A expressão escolhida por Hillary é reveladora. A perspectiva de que se extirpe o segredo do cotidiano político parece comprometer a própria existência desse universo. Relações internacionais transparentes parecem uma utopia à primeira vista, mas um olhar mais próximo as revela distópicas. Decisões governamentais estariam sujeitas às variações de humor da opinião pública, discussões internas se tornariam inviáveis, o controle de acesso a dados deixaria de ser possível.

Por outro lado, Wikileaks é parte de uma tendência de exposição crescente, em que indivíduos postam suas informações pessoais on-line e buscas simples trazem milhões de resultados em centésimos de segundo. A motivação de quem transfere esses documentos não é clara: "Talvez uma convicção íntima de realizar plenamente o ideal de liberdade de expressão inscrito nos textos fundadores dos EUA", afirma Valérie Jeanne-Perrier, da Escola de Informação e Comunicação (Celsa) da Sorbonne.

O Wikileaks faz jornalismo "sentinela", dá alertas e trabalha sobre segredos: "É atual e deve se tornar dominante", diz Valérie Jeanne-Perrier

Wikileaks se apresenta como uma iniciativa jornalística, sob responsabilidade da Sunshine Press, formada por "dissidentes chineses, jornalistas, matemáticos e jovens engenheiros de computação". Lançado no início de 2007, conta com menos de dez membros, todos voluntários, segundo o próprio grupo. "Trata-se de um modelo de jornalismo 'sentinela', que dá alertas e trabalha sobre a revelação de segredos. É de grande atualidade e parece estar no caminho de se tornar um modelo dominante, de dimensão internacional, ainda que acoplado a um sistema midiático já estabelecido", diz Valérie.

Após alguns meses de existência, o grupo deixou de aceitar contribuições diretas de usuários, o que, em tese, invalida sua denominação como "Wiki". Hoje, toda a atividade de análise e divulgação é interna. O aspecto colaborativo fica por conta de entidades intermediárias. Valérie cita o exemplo do sítio de jornalismo digital Owni.fr, que trabalha sobre os dados divulgados por Wikileaks. "Cria-se, assim, um dispositivo de divulgação dos dados. Cria-se o quadro de leitura que contextualiza os documentos brutos. Wikileaks apenas regrupa os dados, coloca-os em segurança e permite sua difusão."

Sua atuação já mereceu prêmios da revista "The Economist" em 2008 e da Anistia Internacional em 2009, pelo combate à censura e a denúncia de irregularidades governamentais, como assassinatos políticos no Quênia e negociações de arroz de Xanana Gusmão em Timor Leste. Seu editor, o ativista e hacker australiano Julian Assange, de 39 anos, atingiu a celebridade internacional em agosto, quando autoridades suecas o acusaram de assédio sexual a duas mulheres. Assange afirma que a perseguição jurídica é uma tentativa de calar Wikileaks. Pelo mesmo motivo, o editor evita viajar aos Estados Unidos.

Wikileaks recebe denúncias e documentos anonimamente, por meio de um sistema criptografado. Em seguida, organiza-os, avalia sua pertinência e os publica, acompanhados de um texto jornalístico que explica o procedimento e orienta a leitura. Em certos casos, o vazamento é feito por meio de jornais, como "Le Monde", da França, "The New York Times", dos EUA, e "El País", da Espanha. É o que tem sido feito com os documentos diplomáticos, cuja vastidão exige um trabalho de análise e escolha.

Embora Wikileaks se defina como concorrente da "velha mídia", a ligação com os grandes jornais aponta para uma parceria entre os modelos antigo e novo. Segundo Valérie, falta à mídia tradicional os meios técnicos, humanos e jurídicos de recuperar e organizar tamanha vastidão de dados. A estrutura reticular e internacional da internet facilita esse trabalho. Estabelece-se, assim, um "processo de cooperação, uma aliança objetiva pela gestão e repartição de papéis, numa cadeia de trabalho ligada à publicação das informações", afirma.

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