JORNALISTA, É PROFESSOR , DA ECA-USP,
DA ESPM, EUGÊNIO, BUCCI, JORNALISTA, É PROFESSOR , DA ECA-USP, DA ESPM,
EUGÊNIO, BUCCI - O Estado de S.Paulo
O filme chileno No, de Pablo Larraín, foi exibido pela
primeira vez no Brasil em outubro do ano passado, numa sessão exclusiva
para convidados, na abertura da 36.ª Mostra Internacional de Cinema de
São Paulo. Agora, no final de dezembro, entrou em circuito comercial.
Grande vencedor da Quinzena dos Realizadores de Cannes 2012, o filme
confirma nas salas brasileiras a sua carreira internacional vitoriosa.
Agrada a espectadores de várias idades e vários recortes culturais.
Se o leitor habitual desta página A2 do Estadão ainda não viu,
deveria ver. O debate retratado na tela é do mais alto interesse para
quem procura acompanhar os rumos políticos da democracia. O que é que a
empurra numa direção ou noutra? Em que cadinho são sintetizadas as
decisões coletivas? Qual o papel que a publicidade - ou, em termos um
pouco mais amplos, o chamado marketing político - desempenha nesse jogo?
Para Karl Marx e Friedrich Engels, a luta de classes era o motor da
História (grafada com H maiúsculo). Segundo a gente depreende do enredo
brilhante de No, a coisa não é bem assim: o motor da história é uma
mensagem bonita, vibrante de euforia, que "venda" bem. É nisso que o
povo quer embarcar, é isso que o povo quer "comprar". Moral da história
(com h minúsculo), o motor da História, prezados camaradas, é a
publicidade. Por essas e outras, o filme dá o que pensar - e dá margem a
indagações um tanto perturbadoras.
Voltemos ao ponto de partida. No, como bom filme que é, trata de
contar direito uma boa história; não tem nada de aula de ciência
política, não é seminário de sociologia, não se perde em interpretações
acadêmicas sobre os fatos que encadeia com esmero. O cineasta Pablo
Larraín reconstitui com verossimilhança impressionante, num andamento de
documentário, um fato histórico real: a campanha pelo "Não" (daí o
título) realizada pelas oposições chilenas no plebiscito de 1988, que
decretou o fim da ditadura de Pinochet. O filme começa deixando claro
que o que ocorreu ali foi um episódio, no mínimo, improvável.
Internacionalmente pressionado a dar uma roupagem menos truculenta à sua
tirania, o general Augusto Pinochet viu-se constrangido a convocar o
plebiscito para consultar os cidadãos sobre se eles o queriam (ou não)
no poder. No início da campanha o ditador posava de franco favorito,
pois detinha o controle férreo sobre os meios de comunicação. Com a
autoconfiança típica do leão de chácara que virou dono da boate,
Pinochet nem considerava a hipótese de derrota. Nisso os integrantes das
oposições concordavam com o carrasco: para quase todos eles, a hipótese
de vitória era impensável. Acontece que, para dar uma aparência mais
democrática ao plebiscito, o governo precisou conceder às oposições um
horário de propaganda na TV. Foi aí que o impensável se pôs em campo. O
horário era desfavorável (os filmetes das oposições iam ao ar bem tarde
da noite), o ambiente era arredio, mas, mesmo assim, a maré começou a
virar.
Por quê?
Porque os comunistas, os socialistas, os perseguidos, os liberais de
oposição, o multicolorido balaio de gatos das oposições, foram buscar um
publicitário de sucesso para dirigir sua campanha. Esse homem de
mercado, por sua vez, recrutou outros bruxos do consumo e da linguagem
comercial da TV. Nesse ponto, No fotografa com absoluta nitidez o
momento histórico (cuja cronologia varia de país para país) em que o
publicitário desbanca o ideólogo no comando da luta política. Em lugar
das cenas de espancamentos e de repressão explícita, em vez do desfile
das mães chorosas dos milhares de desaparecidos, os publicitários do
"No" contrariaram os velhos ideólogos e deram preferência a musiquinhas,
piqueniques, trocadilhos, anedotas, o que detonou a ira dos
esquerdistas mais conservadores. Alguns deles se retiraram ruidosamente
do comitê de campanha, que acusaram de ter-se vendido aos publicitários
que degradavam as mais nobres causas humanitárias a apelos vulgares de
comercial de sabonete.
Ou de micro-ondas. Não importa. No final, o "No" sagrou-se vencedor,
embora num placar apertado: considerados os votos válidos, o "No"
conquistou 56% do eleitorado, enquanto o "Si" obteve a adesão de 44% (e
nisso está o dado mais intrigante: para 44% dos chilenos, o país sob
ditadura ia muito bem, obrigado). A vitória dos publicitários, contudo,
não revogou o fundamento daqueles que se opuseram à transformação da
campanha do "No" numa campanha publicitária como qualquer outra. Esse
debate permanece e, por qualquer caminho que se queira abordá-lo, ele
nos conduz ao centro da viabilidade (ou não) do projeto democrático nos
nossos dias. Será sólida e sustentável uma democracia em que os
argumentos que não cabem em 15 segundos de televisão acabam descartados
da agenda política? Que lugar resta para a razão numa comunicação
política regida cada vez mais pela lógica do desejo, ou, pior ainda,
pelo desejo de consumo?
Alain Touraine viu esse impasse há cerca de 20 anos: "As sociedades
complexas e de mudanças rápidas pouco a pouco deixam de ser sociedades
de intercâmbio, da comunicação e da argumentação, para serem cada vez
mais sociedades da expressão. (...). Cada vez menos tratamos com
comunicadores e cada vez mais com atores".
Eis aí uma equação ainda insolúvel. A publicidade infantiliza o seu
público, tutelando-o como a um semi-inimputável; não tem parte com a
busca radical da verdade, mas com a sedução em prol da venda de
produtos, serviços ou ideias. Dirão que a política sempre foi isso, um
comércio de ideias, mas, ainda assim, é o caso de perguntar: será essa a
emancipação com a qual sonharam os liberais revolucionários do século
18? Ótimo que o "No" tenha vencido no Chile em 1988, mas será que a
transformação das causas políticas em mercadorias desejáveis é a nossa
mais alta expressão de liberdade?
O Estado de S. Paulo
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