domingo, 15 de julho de 2012

Você não sou eu - ANNA MUYLAERT

Arquivo aberto
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Você não sou eu

Rio, 1984
 
ANNA MUYLAERT

No início dos anos 80, aos 18 anos, tranquei a faculdade de cinema na USP por seis meses.
Patrocinada pela família, fui morar em Paris, onde via filmes diariamente, fazia listas e anotações, na tentativa de elaborar um projeto ou um discurso cinematográfico que eu não sabia qual era.

Embora minha determinação de dirigir filmes fosse grande, eu ainda era feita, como todo adolescente, "da mesma matéria dos sonhos". Foi neste contexto de cinefilia e busca de identidade que deparei com um filme do alemão Wim Wenders, diretor que despontava na época.

Era "Alice nas Cidades".

A experiência foi impactante: senti como se tivesse encontrado todas as respostas para as minhas perguntas juvenis. E, como é próprio do adolescente, Wim Wenders virou meu ídolo: eu me esforçava para ler em francês tudo sobre ele e seus filmes, comprava pôsteres, assistia às mostras.

Passei a sofrer do que o crítico Harold Bloom chamaria da "angústia da influência".

Terminado o semestre, voltei ao Brasil, pendurei os pôsteres no quarto e voltei para a escola. Não muito depois, ouvi a notícia de que Wenders viria mostrar na sessão de abertura do Festival do Rio o seu novo filme, "Paris, Texas".

Fiquei enlouquecida diante da hipótese de conhecê-lo pessoalmente. Inscrevi meus curtas da Escola de Comunicações e Artes em uma mostra paralela do festival, com o objetivo de mostrá-los ao meu ídolo. Lutei, com sucesso, por um convite para a sessão de abertura. E fui para o Rio.

Na noite da abertura, coloquei meu melhor vestido e o vi pela primeira vez, no palco, apresentando o filme. A sala ficou escura e começou a projeção daquela obra-prima, à qual assisti com um olho na tela e o outro no balcão, onde o Wenders estava sentado.

Quando a sessão acabou, todos se dispersaram, e ele sumiu pelo corredor afora.

Decepcionada, fui para o bar da piscina do Hotel Nacional. Cheguei no balcão para pedir uma bebida quando se aproximou de mim, em tom de paquera, o ator Denis Hopper -o amigo americano em pessoa.

Eu, lógico, dei bola, e ele me convidou para sentar na mesa dele. Que, descobri logo em seguida, era a mesa de Wim Wenders.

Sentei-me com aquele sorriso de quem vive um milagre secreto, mas disfarcei a emoção, tentando não parecer só uma tiete, embora fosse exatamente isso.

Tiramos fotos e falamos trivialidades. Tentei puxar assunto, dar opiniões inteligentes.
Por mais que eu me esforçasse, ele me tratava como uma local bonitinha que poderia ser útil no trato com o garçom. Não foi antipático, mas agia como se eu fosse criança. Vivi uma agonia crescente, até que resolvi dar o fora e encerrar aquele vexame particular.

Antes de partir, tive a cara de pau de pedir a ele que visse meus curtas no festival, ao que ele, solícito, pediu que eu anotasse num papel o nome dos filmes. Então ele também recomendou um curta e, como eu, anotou o nome.

Eu me despedi, levantei e parti. Já no lobby do hotel, quando li o que ele tinha escrito no papel, quase cai para trás. "You are not I". Estava escrito: " Você não sou eu".

Então veio a revelação. Ele tinha toda a razão, eu não era ele, era mesmo apenas uma criança e, de repente, estava livre. Livre da angústia da influência, livre do ídolo, livre para buscar um caminho que fosse meu.

O grande encontro não tinha acontecido, mas sim algo muito maior. E Wim Wenders tinha deixado de ser um ídolo para se tornar um mestre.

Folha de S.Paulo
15/07/2012 


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