domingo, 13 de novembro de 2011

Escritor chinês desafia os limites da censura

The New York Times
Edward Wong
Beijing (China)

Murong Xuecun é um romancista popular chinês. Para exercer sua profissão, Xuecun muitas vezes colide contra os censores, que o levou a ser um crítico da censura na China e a publicar suas obras na Internet Murong Xuecun é um romancista popular chinês. Para exercer sua profissão, Xuecun muitas vezes colide contra os censores, que o levou a ser um crítico da censura na China e a publicar suas obras na Internet

Quando o escritor Murong Xuecun apareceu numa cerimônia aqui no ano passado para receber seu primeiro prêmio literário, ele segurou com força uma folha de papel com algumas das palavras mais incendiárias que já havia escrito. Era uma reflexão sobre o desconforto da censura. "A escrita chinesa exibe sintomas de uma doença mental", ele planejava dizer. "É a escrita castrada. Sou um eunuco proativo, eu me castro antes mesmo que o cirurgião levante o bisturi."

Os organizadores da cerimônia proibiram-no de fazer o discurso. No palco, Murong fez um movimento de fechar a boca com um zíper e saiu sem dizer uma palavra. Então ele fez com o discurso o mesmo que fez com três de seus livros mais vendidos, que passaram por um duro processo de censura: ele postou o texto integral na internet. Seus fãs correram para ler.

Murong Xuecun, pseudônimo de Hao Qun, 37, está entre o mais famoso de uma série de escritores chineses que se tornaram sensações do mercado editorial na última década por causa de seu uso discreto da internet. Os livros de Murong são espirituosos, violentos e niilistas, com histórias de homens de negócios e funcionários públicos envolvidos em propinas, brigas, apostas e encontros com prostitutas nas cidades grandes da China.

O fato de seus livros serem publicados na China mostra como o setor, antes cuidadosamente controlado pelo estado, tornou-se mais regido pelo mercado. Mas a prosa de Murong inevitavelmente vai contra a censura, que o Partido Comunista Chinês tem a intenção de manter apesar das mudanças graduais no setor editorial. Murong diz que ele é um "criminoso das palavras" aos olhos do estado, e um "covarde" em sua própria visão por fazer a autocensura.

Suas crescentes frustrações o pressionaram para se tornar um dos críticos mais vocais da censura na China. Depois de fechar a boca em Pequim em novembro passado, ele fez seu discurso proibido três meses depois em Hong Kong. Ele também discutiu o tema no final de semana passado em Nova York, na Asia Society.

Murong deve seu sucesso comercial ao fato de ter encontrado formas de praticar sua arte e construir uma base de fãs na internet, fora do setor editorial que sofre um policiamento maior.
Ele fala de temas políticos tanto um blog quando numa microblog que lembra o Twitter, que tem quase 1,1 milhão de seguidores. Ele publica seus livros capítulo por capítulo ou em seções online sob diferentes pseudônimos à medida que escreve. Esta serialização ao estilo de Dickens gera um burburinho, e a escrita evolui com o retorno dos leitores. Uma vez que o livro está terminado ou quase, Murong assina com uma editora. As edições censuradas geram dinheiro, mas as versões na internet são mais completas.

Em 2004, a Rádio Internacional da China, estatal, chamou o popular primeiro livro de Murong de "um pioneiro cibernético" numa matéria que depois foi postada no site do jornal "People's Daily", do Partido Comunista. Funcionários locais da cidade de Chengdu, onde a história se passa, fizeram a denúncia.
A versão sem censura do livro, "Chengdu, Por Favor Me Esqueça Esta Noite", foi traduzida para o inglês ("Deixe-me em Paz: Uma História de Chengdu") por Harvey Thomlinson e indicada em 2008 ao prestigioso Prêmio Literário Man Asian.

"Eu simplesmente achei muito divertido fazer isso", disse Murong sobre escrever online, enquanto fumava um cigarro atrás do outro em seu apartamento no 26º andar em Pequim, com vista para os Montes Ocidentais, com um sorriso brincalhão em seu rosto jovem. "Mais tarde, eu percebi que os escritores e leitores na internet estavam mudando o curso da literatura chinesa e dando início a um novo fenômeno."

A internet deu início a uma revolução no setor editorial da China permitindo que várias vozes florescessem. As editoras agora podem identificar novos talentos e comprar os direitos para edições impressas. Tudo isso contribuiu para as reformas no mercado na década passada e para o debate, dentro do partido, sobre como nutrir e controlar o setor ao mesmo tempo.

Embora sua censura sistemática destrua a criatividade, o partido anseia por respeito doméstico e internacional para a produção cultural da China. Depois de um encontro de quatro dias sobre política cultural e ideologia em outubro, o Comitê Central do partido disse que a China precisava incentivar seu poder suave e a "segurança cultural" com mais "produtos culturais interessantes". Na semana passada, o People's Daily fez um comentário pedindo ao estado para transformar as editoras em companhias com marcas internacionais para que seus livros possam ajudar a espalhar "valores centrais do socialismo". E alguns funcionários anseiam para que um escritor da China continental ganhe o Prêmio Nobel de Literatura.

Há tempos os governantes chineses têm uma relação complicada com os livros, promovendo aqueles que preservam o pensamento e a história oficial e banindo ou destruindo outros. Qin Shihuang, antigo unificador da China, queimou livros e enterrou acadêmicos vivos. No século 18, o imperador Qianlong baniu milhares de textos e seus autores por ideias traidoras enquanto reuniu uma vasta coleção imperial para ser impressa. Mao Tsé-Tung e seus camaradas não foram diferentes.

À medida que o discurso intelectual começou a florescer novamente nos anos 80, escritores como Yu Hua, Mo Yan e Su Tong lançaram um olhar crítico sobre a história chinesa e a sociedade rural. Wang Shuo escreveu uma literatura urbana "hooligan". Mas foi o avanço da internet no final dos anos 90 que de fato abriu as comportas.

Escritores mais jovens usaram a rede para contar histórias do boom da China. Um site, Rongshuxia, foi particularmente influente, levando livros de Annie Baobei, Ning Caishen e Li Xunhuan (o pseudônimo de Lu Jinbo, hoje um editor importante que apoia Murong). Nos anos recentes, a internet popularizou a ficção, e as livrarias aqui agora estocam toda variedade de gêneros: ficção científica e fantasia, terror, histórias de detetive, romances adolescentes e, o mais lucrativo de todos, histórias infantis.

"A internet criou todas, e eu digo todas as tendências literárias que decolaram em 2005 e depois disso", diz Jo Lusby, diretor administrativo da Penguin China.
Poder sobre a publicação
Mais livros estão sendo impressos agora do que em qualquer momento desde que o partido Comunista tomou o poder em 1949. Em 2010, cerca de 328 mil títulos foram publicados, mais do que o dobro do número de 2001, de acordo com estatísticas oficiais.

Mas o governo ainda tem importantes instrumentos de controle. A agência que fiscaliza o setor, a Administração Geral de Imprensa e Publicação, não permitiu um verdadeiro crescimento das editoras que têm permissão oficial para publicar livros. No ano passado, havia 581 editoras como estas, apenas 19 a mais do que em 2001. Todas são do estado, e o governo está tomando iniciativas para consolidá-las.
Esses números não capturam um fenômeno importante: a demanda de mercado levou a uma expansão nas editoras privadas. Para publicar, elas precisam ou criar parcerias com editoras estatais ou, mais frequentemente, comprar códigos do ISBN, um para cada título. No papel, esta prática é ilegal, mas as autoridades fecharam os olhos para isso durante anos.

Quanto à censura, editores-chefes agem como vigilantes. Eles sabem que podem perder seus empregos se o material publicado causar a ira dos funcionários. Livros de não ficção de temas especiais como o exército ou religião passam por um veto adicional dos ministérios envolvidos. No setor, "há uma sombra sobre os corações de todos", disse o editor Lu.

Em junho, funcionários transformaram a editora Zhuhai, uma pequena editora estatal, num exemplo, fechando-a abruptamente. A Zhuhai havia publicado uma memória de Jimmy Lai, um editor de jornal de Hong Kong criticado por alguns líderes chineses.

A internet tampouco oferece total liberdade aos escritores, uma vez que há censores online. E alguns escritores relutam em postar livros inteiros por medo da pirataria; Murong disse que ele não postou seu último livro, uma obra de não ficção sobre um esquema de pirâmide, por esse motivo.

Escritores que querem evitar essas dificuldades acabam fazendo o trabalho do governo. Murong disse que ele abandonou dois livros em andamento que ele achou que nunca seriam publicados. Um deles se chamava "O Contra-revolucionário".

"O pior efeito da censura é o impacto psicológico sobre os escritores", disse Murong. "Quando eu estava trabalhando no meu primeiro livro, não me preocupava se ele seria publicado, então eu escrevia o que eu queria. Agora, depois que publiquei alguns livros, posso sentir claramente o impacto da censura quando escrevo. Por exemplo, penso numa frase, e depois percebo que ela com certeza será apagada. Então eu nem a escrevo. Esta autocensura é a pior."
Inspirado pela internet
Murong argumentou com Lu quando eles estavam fechando os planos para publicar "Dançando na Poeira Vermelha", sobre o sistema legal corrupto, em 2008. Lu, que havia comprado um código de ISBN da editora Zhuhai, disse a Murong que queria limitar a edição porque o livro era muito sórdido. Numa entrevista, Lu disse que Murong era "o melhor escritor com menos de 40 anos", mas acrescentou: "Murong tem um problema: seus livros são muito sombrios."

"Ele é um niilista solitário que não acredita em nada", disse Lu.

Os quatro livros de Murong e um trabalho de jornalismo investigativo são baseados nos anos que ele passou nas cidades de crescimento rápido da China. Ele viajou da fazenda de sua família na província de Jilin até Pequim para frequentar a Universidade Chinesa de Ciência Política e Direito, que treina juízes, advogados e policiais, o tipo de gente que figura nos seus livros. Murong então se mudou para Chengdu, depois para Shenzhen e Guangzhou, trabalhando em companhias.

Em 2002, ele começou seu livro sobre Chengdu. Usando um pseudônimo, "The Little Match That Sells Girls" - uma referência distorcida ao conto "The Little Match Girl" de Hans Christian Andersen – ele postou seus capítulos online à medida que os escrevia. O livro em evolução ganhou notoriedade e foi republicado em fóruns. Era picante e prendia o leitor: o protagonista, Chen Zhong, funcionário de uma companhia de óleo e partes de automóveis, pratica adultério e faz propinas com frequência. Há cenas de sexo em bares e bordeis. Um de seus melhores amigos é um policial corrupto.

Escrever na internet significou, na maior parte do tempo, trabalhar além da cortina da censura. O mundo impresso foi diferente. Depois que Murong assinou um contrato para ter um livro de Chengdu publicado por Zhou Wen, um empresário, ele foi obrigado a cortar 10 mil palavras.

Depois que o livro foi publicado, ele postou um manuscrito sem censura na internet, um que era ainda mais completo do que a versão capítulo a capítulo que ele havia escrito online. "Eu me senti liberto", disse ele.

Alguns escritores são céticos e acham que os livros sem censura na internet não têm muito efeito. Chan Koonchung, autor de "The Fat Years", um livro distópico publicado em Hong Kong e Taiwan mas proibido na China continental, teve pelo menos duas versões eletrônicas de seu livro postadas por fãs. Mas ele disse acreditar que apenas poucas pessoas na China continental leriam o livro online porque ele não pode ser discutido na mídia ou de qualquer outra forma.

"A maioria das pessoas não sabem sobre esses livros", disse Chan. "Então elas não vão para a Internet procurá-los."

Murong eventualmente persuadiu outra editora a publicar uma edição completa do livro de Chengdu. Os direitos de publicação geralmente duram de três a cinco anos na China, e as editoras que lançam as edições seguintes às vezes se sentem mais confiantes para reinserir passagens que foram originalmente censuradas.

"Uma vez que um livro passa pela censura e é publicado, ele é legítimo", disse Murong. "Alguns anos depois, você pode publicar a versão completa. A lógica é a seguinte: se a primeira versão não foi proibida, por que a segunda seria?"
Aprendendo as linhas
Murong começou a se tolher em seu segundo livro, "Céu à Esquerda, Shenzen à Direita", sobre jovens que tentavam a sorte em Shenzen. "Eu já sabia quais eram as linhas, baseado na experiência do meu primeiro livro editado", disse ele.

Por exemplo, Murong originalmente queria que seus protagonistas tivessem experienciado os protestos reprimidos da Praça Tiananmen em 1989. Mas ele disse que não ousou ultrapassar "essa linha vermelha intocável".

Houve outro ímpeto para a auto-censura. "Eu sempre fiquei amigo dos editores", disse ele. "Não quero causar problemas para meus amigos. Se eles dizem que algo é arriscado, ou que podem perder o emprego por causa disso, eu deixo eles deletarem o que quiserem."

Assim como o livro sobre Chengdu, a versão completa da história de Shenzhen existe online. Uma versão sem censura do quarto livro de Murong, sobre o sistema legal, é vendida como e-book.

"Agora que estou consciente das minhas tendências de auto-censura, tento compensá-las enquanto escrevo", disse Murong. "Posso escrever uma versão e publicar outra 'mais limpa'".

A batalha mais dolorosa de Murong com a censura aconteceu quando ele trabalhou com um editor da editora Heping em seu último livro, "China: Na Ausência de um Remédio", uma não ficção que documenta os 23 dias que Murong passou disfarçado para investigar um esquema de pirâmide. Houve negociações intermináveis. Até uma expressão como "povo chinês" teve que ser mudada para "um povo". Murong gritou com o editor, quebrou uma xícara no chão e deu um soco na parede de sua casa.

"Parecia que alguém estava me castigando por motivo algum", disse Murong. "Em 2008, a censura foi dolorosa, e eu consegui passar por ela. Mas em 2010, eu não a suportava mais."


Zhang Jingtao, o editor, disse que queria "tornar o livro mais apropriado para nossa sociedade e nossos tempos".

"Editar livros é uma atividade cultural, que cai no domínio da ideologia", disse Zhang. "Meu trabalho é ser o controle de qualidade ideológico."

O livro foi publicado no ano passado e bastante aclamado, embora incompleto. Jornais publicaram artigos sobre o papel de Murong ao alertar a polícia sobre a fraude. O livro foi transformado em série na Literatura do Povo, uma revista co-fundada por Mao. Seus editores decidiram dar o prêmio anual de literatura da revista para Murong.

Em novembro passado, um dia antes da cerimônia do prêmio, Murong passou oito horas preparando seu discurso. Ele escreveu: “a única verdade é que não podemos falar a verdade. O único ponto de vista aceitável é que não podemos expressar um ponto de vista”. O texto tinha 4 mil palavras. No final, nenhuma foi dita.

Tradução: Eloise De Vylder

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