quinta-feira, 28 de abril de 2011

PASQUALE CIPRO NETO - Foi sem querer querendo

Sugiro ao nobre senador a leitura do capítulo 31 de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" ("A Borboleta Preta")


QUEM NÃO É ESPECIALISTA nos estudos da linguagem talvez não saiba o que é a análise do discurso. Um dos objetivos dessa disciplina, entre outros, é "desvendar" o que está por trás de certas construções linguísticas, enunciados etc.
É claro que há muitos exageros nesse território. Há muitos "doutores" nessa matéria que veem chifres em cabeça de urubu, jacaré, macaco, sapo, barata etc., mas não os veem em cabeça de boi. Nos tristes tempos do (ultrachato e macartista) "politicamente correto", então, é um tal de muito analista do discurso ver "preconceito" em qualquer manifestação. O resultado disso é a "hipocritização" do discurso, tão nefasta quanto o exagero no exercício do "politicamente correto".
Deixemos de lado os exageros e vejamos como o modo de perguntar/dizer algo pode deixar subentendido determinado prejulgamento. Vou dar como exemplo algo que ocorreu comigo há alguns dias, no aeroporto de Confins (MG). Ao fazer o check-in, induzido pela má colocação dos cartazes de separação dos passageiros (quem fez o check-in pela internet e só vai entregar a bagagem, quem não o fez, quem tem o cartão X etc.), entrei na fila errada. Quando percebi, fui para a posição certa (a dos possuidores do cartão X), que ficava ao lado daquela em que eu estava. Não havia ninguém na fila. Como fui recebido pela funcionária? Com uma gentil pergunta: "O senhor furou a fila?".
Sem comentários, não? Achei melhor fingir que não ouvi a pergunta e mostrar logo o tal cartão. A moça empalideceu e me tratou com muita gentileza. Só não pediu desculpas pela gafe. O que a terá levado a fazer-me a tal pergunta? Deixo para você a resposta, caro leitor.
Pois passemos de Confins para Brasília. Você decerto sabe que na última segunda-feira um nobre senador da República sequestrou o gravador de Victor Boiadijan, repórter da Rádio Bandeirantes. Na terça, no plenário, o senador disse, entre outras joias, que sequestrou o gravador para evitar que o repórter editasse a entrevista. Pois bem, caro leitor, o que está por trás do que disse o senador? A clara afirmação (acusação) de que o repórter da Bandeirantes edita entrevistas, ou seja, manipula, monta e remonta o que lhe dizem seus entrevistados.
Isso me lembra a corriqueira história do elevador que demora muito para aparecer. O indivíduo que está no térreo esmurra a porta. Enquanto isso, outro indivíduo, que está no terceiro andar, também espera há algum tempo o elevador, que não se sabe onde está (não há painel indicativo). Finalmente chega o ascensor. O cidadão que está no terceiro andar o toma e desce. Ao chegar ao térreo, é recebido aos berros e insultos por quem lá estava. Pensar dói. O culpado é sempre o outro, o primeiro que aparecer pela frente.
Não é preciso ser doutor em análise do discurso para perceber a inconsistência dos argumentos do senador. O fato é que ele tomou uma atitude violenta e apresentou para seu ato justificativas dignas de torcedores fanáticos, daqueles de torcidas organizadas (Xi! Lá vem o pessoal do politicamente correto dizer que... Dai-me força e paciência, Senhor!), ou seja, justificativas que "justificam" o injustificável. É claro que isso só vale para os próprios atos (para os do outro, não e não).
Do alto da minha insignificância, sugiro ao nobre senador (e a quem mais possa interessar-se) a leitura do genial capítulo 31 de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" ("A Borboleta Preta"), de Mestre Machado de Assis. O percurso dos argumentos que o narrador apresenta para a toalhada que dá na borboleta preta faz do senador um principiante na matéria. Aula das aulas. É isso

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