sábado, 9 de junho de 2012

Fernando Pessoa e o cinema - SILVIANO SANTIAGO

Se um grande escritor europeu não passar nos anos 1920 pela experiência vanguardista de cineclube, que concepção de cinema orientará seus escritos? A pergunta me ocorre ao ler Argumentos para Filmes (Ática, 2011), reunião dos textos de Fernando Pessoa em torno da sétima arte. Cuidadosamente pesquisada e diligentemente anotada por Patrício Ferrari e Cláudia Fischer, a primorosa edição divide-se em quatro seções. Na primeira, reproduz-se o conjunto dos sete curtos "arguments for films" (daí o título do livro) redigidos nas três línguas que o poeta domina. Seguem-se breves apontamentos críticos bibliográficos (segunda seção), projetos empresariais em que o cinema é o fundamento (terceira seção) e, finalmente, alguma correspondência onde se faz menção à arte.

No prefácio, Patrício e Cláudia acolchoam com citações poéticas do engenheiro Álvaro de Campos as ideias sobre cinema sugeridas por Pessoa e nunca desenvolvidas. No posfácio (a melhor parte do livro), Fernando Guerreiro esforça-se por resgatar o valor dos escritos especializados pela análise de frases pontuais. Ao generalizar a experiência de cinema expressa pelo poeta, Guerreiro recorre às teses defendidas pelos companheiros dele na revista presença (1927-1940). Sai-se bem teoricamente, entregando a palma de ouro ao desconhecido e influente Fernando Ferro, cujos textos críticos circularam no Brasil nos anos 1920. Embora se afirmasse como defensor de Salazar e de outros fascistas, Ferro defendia ideias afinadas com a papa-fina da vanguarda cinematográfica, haja vista A Idade do Jazz-Band (1924).

O livro Fazer pela Vida - Um Retrato de Fernando Pessoa, o Empreendedor (Assírio & Alvim, 2005), de António Mega Ferreira, talvez forneça a chave para se compreender a relação frustrada e frustrante do poeta genial com o cinema. Dois dados apontam para o empreiteiro. O primeiro está nos títulos de filmes que constam dos diferentes recortes conservados por Pessoa ao longo de sua vida. 74 dos filmes anunciados/criticados são americanos, 33 franceses, 10 alemães, 8 portugueses, etc. Todos são produções comerciais. Nenhuma alusão a Un Chien Andalou, de Buñuel/Dalí, ou a Entr'acte, de René Clair. Ivan, o Terrível, único filme soviético a comparecer, não pode ser o de Eisenstein, que é de 1944.

O segundo dado se encontra em anotações que Pessoa redige desde 1919. Idealizam a criação da empresa Cosmopolis, cujo modelo é o Touring Club da França (1906). O projeto grandioso concebido pelo poeta visa a promover Portugal na indústria do turismo, dispensando atenção a traduções de obras literárias e a trabalhos fotográficos. Nos esboços, ele se refere ao cinema como - e cito - "uma das maiores armas de propaganda que se pode imaginar". Atraem-no o aspecto industrial da arte e a vertente documentarista, puxada à divulgação junto ao grande público de acontecimentos políticos candentes. Não foram alheios ao projeto cinematográfico de Cosmopolis os vários filmes sobre o presidente Sidônio Pais (1872-1918), produzidos naqueles anos pela Companhia Lusitania Film. Como se sabe, transformado em mártir, o presidente rei é figura política da preferência do autor de Mensagem.

O cinema pegou Pessoa pelo calcanhar de aquiles. Os argumentos para filmes não poderiam ser de teor diferente. O exímio prosador arquiteta tramas teatrais onde a máxima pirandelliana, "assim é, se lhe parece", alça voo para o leitor. Desenroladas em ambientes fechados, as situações desenhadas pelas sinopses nos seduzem pelos jogos de ambiguidade na evolução dramática dos personagens. Não sugerem imagens que surpreenderiam ou chocariam o espectador, como acontece nos filmes de vanguarda. Se realizados, os filmes não seriam mostrados nos cineclubes. Seriam produções bem comportadas de estúdio, que visam ao sucesso comercial.

Pessoa pouco se inquietou com os manifestos surrealistas de André Breton, daí que detectamos certa boa vontade no crítico Patrick Quillier quando examina duas das sinopses mais instigantes (uma delas escrita em francês). Destaca o texto em que a mudança brusca de décors e o desencontro temático nas situações anotadas "apontariam para um cinema onírico, de tonalidade surrealizante", inspirado por Buñuel/Dalí.

Desenvolvida aqui e ali na escrita poética de Pessoa, a sintaxe de inspiração cinematográfica teria origem indireta na apreciação do filme como manifestação de nova linguagem dramática. No fundo, a sintaxe fragmentada de Pessoa deriva das "palavras em liberdade" e da "imaginação sem fios", preconizadas por Filippo Marinetti no Manifesto técnico da literatura futurista (1912). É inegável que muitas das teses desenvolvidas pelo sensacionismo, movimento literário de inspiração futurista de que é figura maior o heterônimo Álvaro de Campos, propõem uma linguagem ajustada tanto ao "agitar-se do teclado de um piano mecânico" quanto, no filme, à "dança de um objeto que se divide e se recompõe sem a intervenção humana".

Tomados ao citado manifesto, esses princípios estéticos acentuam a análise nuançada dos prefaciadores da edição: "A insistência na velocidade e na vertigem, por um lado, e a multiplicidade das sensações, por outro, remetem evidentemente para as estéticas futurista e sensacionista de que está imbuída a poética de Álvaro de Campos, mas estas, por sua vez, jogam aqui com o tópos da brevidade, da rapidez e da vertigem também verbalizadas no discurso vigente sobre cinema". Na obra de Pessoa, a estética do cinema é parte de um jogo em andamento. No espelho do texto se reflete menos a estética do filme e mais a própria literatura de vanguarda e a moderna indústria do entretenimento e da publicidade.

Na quarta-feira, dia 13 de junho, não serão os escritos sobre cinema que acenderão a vela definitiva no bolo de aniversário do poeta.
Estadão
09/06/2012 

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