segunda-feira, 8 de novembro de 2010

ENFIM, UM HERÓI DO LADO CERTO

ENFIM, UM HERÓI DO LADO CERTO

RECORDISTA DE PÚBLICO, TROPA DE ELITE 2 CONSAGRA O TENENTE-CORONEL NASCIMENTO, VIVIDO POR WAGNER MOURA, COMO O EXEMPLO DO POLICIAL HONRADO COM QUE TODOS OS BRASILEIROS GOSTARIAM DE CONTAR
Veja - 08/11/2010


Já tendo atraído quase 8,5 milhões de pessoas aos cinemas, Tropa de Elite 2 entra em sua quinta semana de exibição como o filme mais visto do ano e o segundo filme brasileiro de maior público na história. Tem todas as chances de ultrapassar os 10 milhões do ainda campeão Dona Flor e Seus Dois Maridos, de 1976. Para além desses números impressionantes, Tropa de Elite - o primeiro filme, de 2007 - e sua sequência são fenômenos de repercussão. O tenente-coronel (no primeiro filme, capitão) Roberto Nascimento, vivido com intensidade assustadora por Wagner Moura, tomou-se um personagem da cultura brasileira. Os dois filmes protagonizados por ele merecem ser vistos duas vezes: uma vez para observar o que se passa na tela e outra para ver a reação do público, que costuma ovacionar Nascimento quando ele tortura bandidos (no primeiro Tropa) e quando espanca barbaramente um político corrupto (em Tropa 2).

Por terem suscitado essa reação barulhenta, os filmes de José Padilha já receberam a velha pecha com que os patrulheiros tentam coibir tudo o que não se enquadre nas suas ideias de acepção ideológica: "fascista". A torcida por um personagem de ficção, porém, não significa necessariamente endosso a todos os seus atos. A aclamação a Nascimento vem, em grande parte, de um legítimo anseio comum aos brasileiros de bem, de qualquer região ou classe social: todos querem circular pelas ruas de sua cidade sem medo do assédio da bandidagem, e desejam que essa segurança seja garantida por uma polícia impecavelmente honesta, gerida por homens públicos probos. Nascimento é irredutível em seu repúdio à corrupção, seja ela praticada pelo soldado da PM ou pelo secretário de Segurança do estado. E essa pureza brutal fez dele um verdadeiro herói nacional.

O código de ética de Nascimento é - para usar a expressão de José Padilha – “torto”: não condescende com a desonestidade, mas admite a tortura. “Como o estado falha na segurança, nós, que somos vítimas, temos a tendência de buscar soluções personalizadas, individuais. Nascimento dá vazão a essa ânsia por soluções imediatas. Ele é um justiceiro do século XXI brasileiro”, define o historiador Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Carlos. Engana-se quem imagina que essa demanda por soluções efetivas na segurança e, sobretudo, por honestidade por parte dos agentes do poder público seja veleidade de uma classe média amedrontada. Ex-policial da ‘tropa de elite” aludida no título dos filmes - o Batalhão de Operações Especiais (Bope) do Rio de Janeiro -, Rodrigo Pimentel, colaborador essencial de Padilha na elaboração de seus enredos, já assistiu à Tropa de Elite 2 uma dezena de vezes, nos mais variados pontos do Rio de Janeiro, de shopping centers da Zona Sul a favelas dominadas por milícias (tema central de Tropa 2). A cena em que o tenente-coronel encarnado por Wagner Moura mói de pancadas um político ficha-suja foi aplaudida vigorosamente em todos os lugares.

A corrupção da polícia, em particular, faz-se sentir mais dolorosamente pela população das favelas. Em 2006, uma pesquisa feita pelo Núcleo de Pesquisa das Violências da Universidade Estadual do Rio de Janeiro com 3.500 habitantes de bairros distintos da capital mostrou que 60% não confiam na polícia, que consideram corrupta e violenta. A pesquisa ainda revelou que 4,4% desse universo foi vítima de violência física, 7,1 % de violência verbal e 10% de extorsão por policiais militares. “Esses números podem ser ainda maiores. Em áreas violentas e pobres, as pessoas têm medo de acusar a polícia”, diz Alba Zaluar, coordenadora da pesquisa. Em 2007, Alba realizou outro estudo similar, com foco social mais estreito: foram entrevistados 660 moradores de favelas cariocas. O dado é chocante: 52% dos entrevistados disseram já ter visto alguém pagando propina a um policial.

“Nenhuma polícia pode ser eficiente se tiver corrupção em seus quadros”, diz José Vicente da Silva Filho, ex-coronel da Polícia Militar de São Paulo e um dos maiores especialistas brasileiros em segurança. As experiências de cidades americanas como Los Angeles revelam uma relação direta entre a moralização da polícia e a queda nos índices de criminalidade. Historicamente marcado por casos de corrupção (que, aliás, forneceram argumento para uma penca de bons filmes, como Chinatown e Los Angeles - Cidade Proibida), o Departamento de Polícia de Los Angeles passou por uma longa intervenção federal entre 2000 e 2009. Dois episódios foram decisivos para determinar essa medida drástica: o espancamento do taxista negro Rodney King por policiais brancos, em 1991, foi o estopim de motins raciais que abalaram a cidade. Em 1999, um grupo de policiais foi preso por assassinato e envolvimento com o tráfico de cocaína (caso que inspirou Dia de Treinamento, estrelado por Denzel Washington). O Departamento de Justiça dos Estados Unidos, então, passou a dirigir a polícia diretamente, fixando metas a ser cumpridas. E esta contratou William Bratton, gestor de forças de segurança que ajudara o prefeito Rudolph Giuliani a converter Nova York na metrópole mais segura do país. Bratton implantou medidas cuja eficácia já fora testada em Nova York: investiu na cooperação com outras polícias e agências de segurança, como o FBI, deu início a uma gestão baseada na cobrança de resultados e, sobretudo, prendeu bandidos em escala industrial (750.000 presos em sete anos). A redução da criminalidade é a segunda mais acentuada entre as dez principais cidades americanas a vencer o crime (perde apenas para a de Nova York). Tudo isso foi realizado, é bom frisar, sem nenhuma tolerância com a brutalidade policial encarnada por Nascimento. “Não se pode quebrar a lei para impor a lei”, disse Bratton, hoje aposentado da polícia, a VEJA.

O que falta à polícia brasileira são reformas verticais, para expurgar os elementos corruptos e profissionalizar os honestos. As milícias, tema central de Tropa de Elite 2, são uma mostra perversa das deturpações a que chega a polícia quando se é leniente com a corrupção e a violência. No filme, a milícia instala-se em favelas que o Bope do tenente-coronel Nascimento liberou do tráfico, mas há aí certa simplificação ficcional. “Há vários modelos. Em alguns lugares, a milícia tornou o lugar do tráfico, como se vê no filme. Em outros, ela faz acordos com os traficantes”, esclarece o antropólogo e especialista em segurança pública Luiz Eduardo Soares, coautor, ao lado de Cláudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel, de Tropa de Elite 2. Entre os maiores interessados na moralização da polícia estão os próprios policiais. É uma questão básica de autoestima. Uma pesquisa encomendada por VEJA ao instituto Sensus e divulgada pela revista em dezembro de 2009 constatou que os policiais cariocas são os que mais percebem corrupção em seus quadros: 46% dos policiais militares veem muita corrupção na Polícia Civil, e 52% dos civis dizem o mesmo da PM. Os dados nacionais das polícias Civil e Militar são alarmantes: o porcentual dos que admitem a existência da corrupção se aproxima dos 90% em cinco capitais.

A ironia trágica é que os policiais, na linha de frente das conflagrações urbanas do Brasil, são vítimas preferenciais da violência. Em São Paulo, à medida que decresce a taxa de homicídios (a divulgada na semana retrasada, de 10,17 mortes intencionais para cada 100.000 habitantes, é a mais baixa em décadas), menos policiais também tombam em serviço. Passaram de 38 em 2006 para 22 em 2009. No Rio, onde as estatísticas acompanham a precariedade da segurança pública, pelo menos 89 policiais militares foram assassinados em serviço desde 2007. Em comparação, em Nova York, nos últimos cinco anos, apenas três foram mortos. Em Los Angeles, talvez a metrópole mais conflagrada dos Estados Unidos, um policial tombou em ação em 2006 e dois em 2008.

O aspecto simbólico desse descompasso está bem representado pela pompa dos serviços fúnebres dados aos policiais americanos - com autoridades a postos, corporação em traje de gala, parada nas ruas. E indenização, para a famí1ia, que pode chegar a 200.000 dólares. No Brasil, como se vê nos testemunhos destas páginas, as viúvas de policiais assassinados têm em geral de brigar para receber pensões parcas. Os dois Tropa de Elite apresentam um policial complicado, miserável em sua vida pessoal, que pratica indizíveis atos de violência. Mas, apesar disso - e da desilusão com que ele chega ao fim do segundo filme -, é um homem que se orgulha de sua farda. Esse é um aspecto fundamental para a autoestima da polícia - e também para a saúde da democracia brasileira: afinal, uma sociedade que não se reconhece minimamente em sua polícia evidencia um descrédito perigoso nas próprias instituições.

Entre os milhares de homens da lei já retratados pelos filmes e séries americanos, alguns, como Nascimento, se tornaram icônicos. Por exemplo, o policial que arrisca a vida pela honestidade em Serpico, de 1973, ou o Dirty Harry que Gim Eastwood começou a interpretar em 1971, irredutível na defesa dos direitos das vítimas e muito flexível no que toca aos direitos dos criminosos. Essas figuras chegaram à condição de ícones porque ecoam um anseio existente na realidade. E a realidade brasileira é complexa: as pessoas aplaudem Nascimento; e algumas delas, então, procuram cópias piratas de Tropa de Elite no camelô, pagam “uma cervejinha” ao guarda para que cancele uma multa, pedem ao fiscal que vistoria sua reforma que “dê um jeitinho” (e como é ofensivo o uso desse diminutivo pretensamente inocente). Para que Nascimento - ou melhor, uma versão civilizada dele - deixe de ser exceção e se torne regra, cada cidadão tem de deixar de abrir exceções para si e seguir também ele as regras. Da mesma maneira que o primeiro Tropa de Elite demonstrava que um cigarro de maconha aceso numa festa de classe média põe um fuzil nas mãos de um menino do morro, cada “cervejinha” torna mais distante o sonho de uma policia civilizada. Esse é, talvez, o único aspecto em que Tropa de Elite 2 desaponta: na invocação de uma ideia de “sistema”, cuja engrenagem perversa seria tão carregada pela inércia da corrupção e da ineficiência que giraria sozinha, a despeito de tudo e todos. Mas não há “sistema”: o que há é a soma das ações dos indivíduos.

José Padilha resiste a considerar o personagem de seus filmes um herói. “Ele tortura inocentes e mata pessoas que deveria prender. Não tem as virtudes morais que o senso comum exige de um herói”, diz. Mas um herói - em particular, um herói de ficção - não precisa se apresentar como um ser humano exemplar, de moral irretocável. Ao considerar os heróis da tragédia clássica grega em sua Poética, o filósofo Aristóteles dizia que os homens completamente virtuosos ou totalmente maus não servem para esse papel: a situação trágica por excelência, dizia ele, a do homem de grande reputação, moderadamente virtuoso, que cai no infortúnio não por ser vil, mas “por força de algum erro”. Resguardadas as diferenças entre um blockbuster brasileiro e o teatro grego, é cabível afirmar que o personagem vivido por Wagner Moura é uma figura dessa estirpe, vítima da arrogante ideia de que sua simples promoção a subsecretário de Segurança do Rio seria o bastante para limpar a criminalidade e a corrupção policial da cidade. O tenente-coronel Nascimento, em suma, é um herói da tragédia brasileira.

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