quinta-feira, 31 de maio de 2012

Escrita recriativa - Francisco Bosco

Ninguém cria do nada, mas sim seleciona, edita e organiza as linguagens à sua volta


Estima-se que quatro trilhões e quinhentos bilhões de palavras foram consumidos pela população dos EUA em 1980. Essa quantidade teria aumentado, em 2008, para quase onze trilhões de palavras, o que resulta num consumo diário de cerca de cem mil palavras por cidadão americano. Para se ter uma unidade de comparação, “Guerra e paz”, de Tolstói, tem quatrocentas e sessenta mil palavras. Ou seja, é como se cada americano consumisse um “Guerra e paz” a cada quatro dias e meio. Por consumo de palavras não se deve entender apenas ler, no sentido tradicional, mas ouvir, falar, ter os olhos assediados pelas mensagens que proliferam no espaço público. Diversamente do que foi profetizado há poucas décadas, a cultura da imagem não engoliu a cultura verbal. O surgimento da internet, do e-mail, do SMS e das redes sociais inundou de palavras os espaços público e privado. Como a literatura deve reagir a esse cenário de alta proliferação de textos?

É essa a questão que se propõe responder o livro “Uncreative writing”, do poeta americano Keneth Goldsmith (mais conhecido por ser o editor do site UbuWeb, disponibilizador de arquivos das vanguardas do século XX em áudio e vídeo). “Escrita criativa” é uma expressão bastante comum nos EUA Instituições de ensino americanas oferecem cursos assim chamados; são oficinas textuais para candidatos a escritor Goldsmith chama a atenção para o que há de conceitualmente equivocado e anacrônico nessa expressão. A palavra “criativa” está carregada de noções de genialidade e originalidade. A experiência moderna, do final do século XIX até hoje, não se cansou de refutar essa representação da atividade literária (e artística em geral).

Com efeito , uma longa sucessão de escritores — e em seguida de teóricos — recusou as ideias românticas de inspiração, espontaneidade, criação ex-nihilo, interioridade, expressão dos sentimentos etc. “A filosofia da composição”, de Allan Poe, o poema despersonalizado de Mallarmé, a perspectiva materialista do formalismo russo e a linguística estrutural de Jakobson são alguns dos momentos principais desse processo. Toda essa redefinição da ideia de criação literária é interpretada e sintetizada por Barthes em seu clássico ensaio “A morte do autor”. Nele, o semiólogo francês representa o autor como um compositor de linguagens, um orquestrador de códigos. Ninguém cria do nada, mas sim seleciona, edita e organiza as linguagens à sua volta. A originalidade está no destino, não no início. “Sem dúvida sempre foi assim”, diz Barthes.

Goldsmith concordaria. Mas, para ele, essa trajetória sofre uma inflexão atualmente, por conta da extrema proliferação da linguagem verbal. Diante dela, o que deve fazer um escritor? Para Goldsmith, ele não deve acrescentar textos a um mundo já saturado deles, mas copiá-los, editá-los, desviá-los: “Diante de uma quantidade sem precedente de textos disponíveis, o problema não é precisar escrever mais; ao invés disso devemos aprender a negociar a vasta quantidade já existente.” É o que ele chama de “uncreative writing”: o uso dos múltiplos recursos de pós-produção oferecidos pelo universo digital: copiar e colar, editar, deslocar a informação, subverter textos já existentes. Por exemplo: “Fazemos pequenas mudanças em páginas da Wikipedia (alterando um an por um a ou inserindo um espaço extra entre palavras).”

Tenho duas observações a fazer. A primeira é que, como Goldsmith não deixa de reconhecer, qualquer literatura, de qualquer época anterior, mesmo que não soubesse disso, já era “uncreative writing” (que proponho traduzir por escrita recriativa, num lance de transcriação). O que há de novo é que as técnicas de pós-produção tornaram material e explícito o que antes era imaterial e implícito. Machado de Assis editou, de maneira invisível, Sterne e De Maistre. Os escritores “recriativos” contemporâneos também editam linguagens, só que as linguagens editadas permanecem reconhecíveis no texto recriado.

A outra observação diz respeito ao problema do valor. Os espíritos tradicionalistas tendem a ver na operação proposta por Goldsmith uma espécie de valetudo democrático, uma homogeneidade
no limite niilista, onde tudo se equivale e se anula. Goldsmith responde que não se trata disso: “Democracia é bom para o YouTube, mas é geralmente uma receita para o desastre quando se trata de arte.” O valor deve ser fundado na diferença produzida pelos recursos de apropriação e edição dos textos. Vale o de sempre: quanto maior a diferença — a singularidade, o imprevisto — melhor. Concordo, mas tirando o espírito vanguardista que insufla toda a perspectiva (o que sempre me soa meio antigo), não há grande novidade nessa história. E me parece que a diferença produzida pela inserção de um espaço entre palavras num verbete da Wikipedia é muito baixa. Mas é preciso julgar caso a caso.

Para terminar, acho curiosa a resposta de Goldsmith à saturação de linguagens no mundo. Não é verdade que a recriação de textos já existentes não acrescenta novos textos (isso é, a rigor, uma contradição, no interior da argumentação dele, entre os âmbitos do método e do valor). Ela multiplica os textos, fazendo-os recircular. A resposta mais apropriada, no meu modo de ver, é a tentativa de construção de textos intensamente diferentes, capazes de se destacar do palavrório banal e infinito do mundo. Textos assim calam a algaravia reinante — suas palavras são uma espécie de silêncio.


O Globo
30/05/2012

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