segunda-feira, 27 de junho de 2011

Felipe Hirsch - Pop cult 51

A cultura da música pop é de almanaque. Proporcionalmente, poucos foram os grandes teóricos que se dedicaram aos temas, como Greil Marcus e seu histórico livro “Mistery train” ou no brilhante “Lipstick traces”, sobre os Sex Pistols, o punk e os dadaístas, sobre os internacionais situacionistas e os libertinos, sobre a vanguarda e os revolucionários hereges medievais. Estou falando dos grandes. Lester Bangs é outro. Mas ele morreu muito novo, com 33 anos. Foi um dos heróis da “Rolling Stone”. Um beatnik desgarrado. Nick Kent, discípulo de Bangs, escreveu, desde 1972, na “NME”. Resultado de sua paixão por Truman Capote e Hunter Thompson. Segundo Kent, não há mais ensaístas que o interessem.

É no escopo geral, no desenvolvimento conceitual de um artista da música popular, que somos capazes de analisar sua obra em progresso. Ou, por outro lado, sua obra perdida, “uróbora”, exausta. Nos três minutos de uma canção somos apenas capazes de passar mais um verão e depois esquecê-la ou, na melhor hipótese, somos atingidos por uma melodia ou verso, como uma mensagem de um biscoito da sorte chinês, e este não nos deixará em paz por um tempo de nossas vidas. É claro que uma cultura como essa, específica, isolada do senso geral jornalístico e portanto histórico, só atinge alvos marginais. Eu cresci assim, ouvindo música no meu quarto. Meus amigos também. Morrissey ouvia música no seu quarto em Hulme quando mandou sua carta, sobre os New York Dolls, para “NME”. Quando isso acontece em cidades pequenas, menos dispersas, mais lentas e tediosas, a dependência ainda se torna maior. Rodávamos a cidade em busca de um vinil de 180 gramas qualquer. Quando me deparei com “Get Happy!!” do Elvis Costello, hiperventilei, meus pés formigaram, minhas mãos tremeram, meu coração quis fugir pela boca e anunciar que estava eternamente apaixonado. Desde então, tenho até relativo interesse pelo resto do mundo, mas o que há de integral em mim é minha paixão pela música.

O ato de escrever, como afirma David Shields, começou 3.200 anos antes de Cristo. E as primeiras formas de escrita foram as listas. Dois séculos, ainda antes de Cristo, Terêncio disse que não havia mais nada a dizer que não tivesse sido dito. É claro que nunca superaremos nosso amor pela literatura russa, é claro que ainda estudamos Ulisses em Cambridge, é claro que Machadinho, como diz Dalton Trevisan, apaixonado pela forma e o humor de Laurence Sterne, já escreveu, com essa forma, algumas das obras eternas da literatura mundial. Mas as listas ainda servem aos nossos planos e Ipods. Da mesma maneira que serviam às fitas gravadas e aos CDRs. Da mesma forma que servirão a qualquer evolução tecnológica futura. Porque o sentido não está na forma e sua evolução. Está no conteúdo amoroso da música. É uma necessidade fundamental dividir canções. É um ato afetuoso. No meu biscoito da sorte, Leonard Cohen disse: “As coisas vão se mover rapidamente em todas as direções, você não será capaz de mensurar mais nada”. Mas em toda mutação tecnológica temporária, em todo período distópico presente, em toda a vida equilibrada por um comprimido de Rivotril, dividir música fará com que essas tais pessoas isoladas se comuniquem umas com as outras.

Isso, tenho certeza, gera amor e gentileza. Tenho pedido insistentemente em redes sociais e espaços, ao meu alcance, que jovens dividam suas paixões e não seus ódios. Que falem sobre seus discos, filmes, peças, livros preferidos. Esqueçam por um momento o que odeiam. Não há mais tempo para ser um cínico. O amor é uma força mais assustadora do que o cinismo. É com ele que você lapidará seu mundo. É com ele que você honrará seu espaço. Mesmo o anônimo. Pois bem, sei que escrevo para meia dúzia de pessoas, proporcionalmente. Da mesma forma que disse, recentemente, para o honrado e respeitoso crítico Jefferson Del Rios que os críticos de teatro escrevem para os artistas de teatro. Sei que poderia apenas me reunir com meus amigos e conversar no meu apartamento sobre as coisas que tenho dito aqui. Faria isso com o maior prazer se não soubesse que, imediatamente, cederia esse importante espaço para uma pessoa que o perderia elegendo “os piores do ano” ou agredindo um espírito iluminado como o de Caetano Veloso. Prefiro pensar que desperto a curiosidade de jovens, como eu fui, capazes de buscar informações sobre algo que não conheçam, pelo prazer apaixonado que a música pop desperta. E hoje, esses jovens têm as ferramentas que os projetam no mundo. Não existem mais desculpas que justifiquem o desconhecimento. Só o autêntico e válido desinteresse. É por isso que raramente ouço de jovens a frase: “Não conheço, ou entendo, nada do que você diz”. Pelo contrário, minha dúzia de amigos tem se multiplicado em mensagens e músicas.

Quando fizemos “A vida é cheia de som e fúria” levamos milhares de jovens pela primeira vez ao teatro. Esse público é o que nos segue desde então por repertórios mais complexos e sofisticados, como “Não sobre o amor”, “Temporada de gripe”, “Pterodátilos” e até em óperas como “O castelo do Barba Azul”, ou no cinema (“Insolação”). Nesses trabalhos, estamos tentando nublar as fronteiras entre as artes. Literatura, cinema, artes plásticas, teatro, arquitetura. A música nos ajudou. Ela é a arte com o menor tempo de mediação intelectual. Mesmo a bela dodecafonia de Schoenberg não consegue afastá-la de nós. Acredite, podemos ouvi-la como ouvimos Sex Pistols. E podemos ouvi-los como ouvimos Nelson Cavaquinho. Assim como podemos ler Thomas Pynchon (um grande amante da música pop) ou Kierkegaard (um grande amante) e listas de almanaques. As únicas fronteiras são as que nós mesmos levantamos. Superar nossa própria defesa é o plano mais saudável.

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